29 de dezembro de 2006

falso lugar #049


Lisbeth Zwerger



febre



eles deixaram-me
porque lhes pedi a febre

não há mundo
no que não se incendeia

escuta:
sou uma vela branca
a murmurar a sua chama

apaga-me
se quiseres ir






11 de dezembro de 2006

a poesia / henri michaux



Náusea Ou é a Morte Que Se Aproxima?

27 de abril



Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.

Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.

Eu, por mim, não posso mais.

Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,

Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.






henri michaux
“equador”
trad. de ernesto sampaio
fenda
1999

11 de novembro de 2006

os livros / thomas mann



THOMAS MANN, MORTE EM VENEZA


Imagem e espelho! Os seus olhos abraçaram a nobre silhueta adiante, na borda do mar azul, e, num arroubo de encantamento, teve a percepção de que este relance o compenetrava da própria essência do belo, da forma como pensamento divino, da perfeição única e pura que habita o espírito e ali erigia, para adoração, uma imagem, um símbolo claro e gracioso. Era esse o seu êxtase. E o artista no declínio da vida acolheu-o sem hesitar, avidamente mesmo. O seu espírito abriu-se como que em trabalho de parto, toda a sua formação e cultura efervesceram, sofreram mutação, a sua memória fez aflorar pensamentos primitivos, transmitidos como lendas à sua juventude e até então nunca avivados por chama própria. Não estava escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real, ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança.
Assim pensava o espírito exaltado de Aschenbach; assim se revelava o poder dos seus sentimentos. E o marulhar das águas e o brilho do Sol teceram a seus olhos uma imagem encantadora. Era o velho plátano não distante das muralhas de Atenas — aquele local divinamente sombrio, cheio da fragrância das flores de agnocasto, ornado de imagens sagradas e oferendas piedosas em honra das ninfas e de Acheloo. O ribeiro caía límpido aos pés da árvore frondosa, sobre cascalho liso: os grilos cantavam. Sobre a relva, porém, que descia em declive ligeiro, onde se podia, estando deitado, manter a cabeça mais alta, estavam dois homens estendidos, ali protegidos do calor intenso do dia: um velho e um rapaz, um frio, o outro belo, a sapiência a par da graça. E, entre graças e brincadeiras espirituosas, Sócrates ilustrava Fedro acerca do desejo e da virtude. Falava-lhe do sobressalto ardente sofrido pela pessoa sensível quando esta vislumbra uma imagem da beleza eterna; falava--lhe do apetite do impuro e do mau, que não pode conceber a beleza, ao ver a sua imagem, e é incapaz de veneração; falava-lhe do temor sagrado que assalta o virtuoso à aparição de um semblante divino, um corpo perfeito — como ele estremece e se transporta, mal ousando olhar, venerando aquele que possui a beleza, sim, estando disposto a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua, se não receasse passar por louco. Pois que a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é — nota bem! — a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos. Ou então, o que seria de nós se, por outro lado, o divino, a razão, a virtude e a verdade se nos quisessem revelar através dos sentidos? Acaso não morreríamos e nos consumiríamos de amor, como outrora Sémele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível para o espírito — só o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro... E em seguida proferiu o mais subtil, aquele cortejador astuto: ou seja, que o amante é mais divino que o amado, visto que naquele existe o deus e nestoutro não -- ideia que talvez seja a mais terna e a mais irónica que jamais foi pensada e da qual nasce toda a malícia e a mais secreta volúpia do desejo.





morte em veneza
trad. sara seruya
edit. europa-américa
1978




6 de novembro de 2006

a poesia / antónio gancho


*


MOSTRAS-ME O FIM do mundo
o Inferno de Dante
onde o Diabo nos arde na sua fogueira
com os demónios todos juntos
mesmo assim quero ir contigo
vou contigo para o fim do mundo
para o fim da Terra
para o Céu ou o Inferno
vou contigo para a fogueira do Inferno
lá quero-me arder contigo
e ardemos os dois
ao mesmo tempo trespassados pela faca do amor.




poemas digitais
jun. / jul. 89
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995

colecção / james abbott mcneill whistler



Nocturne, 1878
Made by James Abbott McNeill Whistler (American, Lowell, Massachusetts 1834 - 1903 London) American
Harris Brisbane Dick Fund, 1917 (17.3.159)

31 de outubro de 2006

falso lugar #047


lições


não há nada tão triste
como a primeira coisa
que escondemos numa gaveta


ou a última pessoa
que enterrámos num papel

29 de outubro de 2006

falso lugar #046


um caminho


um caminho
que perfeito abrigasse
o chão
que nos sustém

e um céu
que se abrisse
ao morrer do medo
num longínquo ponto
sem luz

e que esta paixão
fosse um deserto
sem sede

este amor
o sono do tempo

24 de outubro de 2006

os livros / marcel proust


MARCEL PROUST, EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO



“Já se disse que o silêncio era uma força; num sentido completamente diferente, ele é uma força, e terrível, à disposição daqueles que são amados. Uma força que aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto alguém a aproximar-se de um ser como o que dele o separa, e que barreira existe mais intransponível que o silêncio? Já se disse também que o silêncio era um suplício, e capaz de enlouquecer aquele que nas prisões a ele estava obrigado. Mas que suplício - maior que o de guardar silêncio - é o de sofrer o silêncio de quem se ama! Robert dizia de si para si: «Que estará ela a fazer para estar assim calada? Estará por certo a enganar-me com outros...» Dizia ainda: «Que fiz para ela estar assim calada? Provavelmente odeia-me, e para sempre.» E acusava-se a si mesmo. Assim, com efeito, o silêncio o punha louco de ciúme e de remorso. De resto, mais cruel que o das prisões, tal silêncio é ele mesmo uma prisão. Uma clausura imaterial, sem dúvida, mas impenetrável, aquela fatia interposta de atmosfera vazia, mas que os raios visuais do abandonado não podem atravessar. Haverá luz mais terrível que o silêncio, que não nos mostra uma ausente, mas mil, e cada uma delas entregando-se a alguma outra traição? Às vezes, numa brusca distensão, Robert acreditava que esse silêncio iria cessar daí a pouco, que a esperada carta iria chegar. Via-a a chegar, espiava cada ruído, a sua sede estava já saciada, murmurava: «A carta! A carta!» Depois de ter assim entrevisto um oásis imaginário de ternura tornava a dar consigo patinhando no deserto real do silêncio sem fim.
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efectuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor. Forçava-se contudo a não lhe escrever (pensando acaso que o tormento era menos cruel de viver sem a amante que com ela em certas condições, ou que, depois da maneira como se haviam separado, esperar as suas desculpas era necessário para que ela conservasse o que acreditava que ela sentia por ele, senão de amor, pelo menos de estima e respeito). “





em busca do tempo perdido
volume III o lado de guermantes
trad. pedro tamen
relógio d´água
2003


1 de outubro de 2006

falso lugar #044



é sempre
uma história de amor:

a árvore
que se afeiçoa ao pássaro

o sol
que se liga à água

os olhos
que se prendem ao mar

19 de setembro de 2006

falso lugar #043



e chega-se ao lugar
do saber
ao claríssimo lugar
de tudo se nos correr no coração
como luz
como um animal devotado
e louco
branco, muito branco
caído nos olhos fechados
no outro lado
como se fosse enfim
a morte


3 de agosto de 2006

a poesia / mário-henrique leiria



claridade dada pelo tempo


I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir


II


Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti
e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre


III


Viver com a crueldade
da criança que
tira os olhos ao pássaro

um desconhecido
movendo-se constantemente
no deserto
em que cada pegada deixa
bem marcada na areia
a imagem
dessa outra existência
em que a morte e a memória
ainda nada significam

mais alto

muito mais alto talvez
que a claridade
do voo das aves que
partem para o desconhecido

o próprio corpo nada mais é
do que a sombra
bem simples por sinal
em que,
por erro nosso ou dos outros,
já não existe
a persistência do que
foi perdido

e as mãos
as mãos que sentimos
bem presas seguras aptas
essas
todos sabemos
que podem ainda cada vez mais
esmagar com cuidado
com extremo cuidado
dilacerar suavemente

nos olhos
está o amor


IV


Simples como é
a claridade é a coisa
mais difícil de encontrar
talvez porque a distância que nos
separa longa muito longa
e nítida
seja a torre de chumbo do nosso
próprio isolamento
talvez porque sentir
o aparecimento da madrugada
seja a origem do desespero
sombra trópico lâmina
entre nós dois

ouve o que te digo
não esqueças os meus lábios
mesmo quando desfeitos
e a claridade
essa não a procures não nunca
deixa-a ir comigo
até ao esgotamento do meu sangue
até ao limite
do meu corpo em carne viva


V


Eu sei
que há um lugar por descobrir
um lugar tenebroso e cantante
como uma ponte de velhos manequins


o teu corpo
dois seios despedaçados
e o vento só o vento
soprado através
dos teus cabelos








mário-henrique leiria
“o surrealismo na poesia portuguesa”
antologia organizada por natália correia
frenesi
2002



24 de julho de 2006

19 de julho de 2006

a poesia / chico buarque



choro bandido


mesmo que os cantores sejam falsos como eu
serão bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons
mesmo porque as notas eram surdas
quando um deus sonso e ladrão
fez das tripas a primeira lira
que animou todos os sons
e daí nasceram as baladas
e os arroubos de bandidos como eu
cantando assim:
você nasceu para mim
você nasceu para mim

mesmo que você feche os ouvidos
e as janelas do vestido
minha musa vai cair em tentação
mesmo porque estou falando grego
com sua imaginação
mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas como os cegos
podem ver na escuridão
e eis que, menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim:
me leve até o fim
me leve até o fim

mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
são bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons





edu lobo - chico buarque
para a peça “o corsário do rei de augusto boal”
1985


4 de julho de 2006

falso lugar #041



eis o lugar
da secura súbita dos rios

o deserto estridente
das horas

onde a palavra
se apaga

e os lábios
talham

o novíssimo nome
da morte

eis o tempo
que se esconde
no tempo

a paisagem falsa
da noite
iluminada

o rosto assassino
a mão que esmaga
a luz

no frágil ofício
da doçura

eis o amor
o secreto sangue

no incêndio
dos espelhos

a cinza solta
sobre a ilusão

dos pássaros

27 de junho de 2006

os livros / fiódor dostoiévski



FIÓDOR DOSTOIÉVSKI, CADERNOS DO SUBTERRÂNEO

6

Oh, se eu não fizesse nada só por preguiça! Meu Deus, que respeito teria por mim. E teria esse respeito, precisamente, porque era capaz, pelo menos, de ter preguiça; haveria em mim, pelo menos, a certeza de uma característica definida. Se perguntassem de mim: quem é? E respondessem: um mandrião — isso ser-me-ia extremamente agradável de ouvir. Quer dizer que tinha uma característica determinada, logo, era possível dizer algo de mim. «Mandrião!» — mas isso é um título, um cargo, uma carreira. Não é brincadeira, é verdade. Nesse caso, seria membro de pleno direito de um clube de primeira e passava a vida a respeitar-me. Conheci um sujeito que toda a vida se orgulhou de ser perito em champanhe Laffite. Considerava isso uma grande qualidade sua e nunca duvidava de si mesmo. Morreu, não só de consciência tranquila, mas de consciência triunfante, e tinha absoluta razão. Quanto a mim, escolheria uma carreira de mandrião e glutão, mas não de um simples e corriqueiro mandrião e glutão, antes, por exemplo, de adepto de tudo o que é belo e sublime. Que tal, na vossa opinião? Tive esta ideia há muito tempo. Muito esse «belo e sublime» me oprimiu a nuca, chegado aos meus quarenta anos; mas isso foi aos quarenta — se fosse antes, teria sido outra coisa! Teria também achado para mim, com toda a certeza, a minha correspondente actividade, como seja: beber brindando à saúde de tudo o que é belo e sublime. Não deixaria passar qualquer ocasião de verter, primeiro, uma lágrima no copo e, depois, de o emborcar em honra de tudo o que é belo e sublime. Tornar-me-ia lacrimejante como uma esponja embebida. Por exemplo, um artista pintava um quadro de Gay (1).Imediatamente eu brindava à saúde do artista que pintava um quadro de Gay, porque gosto de tudo o que é belo e sublime. Um autor escrevia que «cada um faz o que lhe dá na gana»; de imediato brindo pela saúde de «quem me dá na gana» porque gosto de todo o «belo e sublime». Exigiria que me respeitassem por isso mesmo, perseguiria quem não me mostrasse respeito. Vivo sossegado, morro solenemente — mas é uma maravilha, uma verdadeira maravilha! E que barriga deixaria crescer, que papo triplo cultivaria, que nariz de sândalo elaboraria; e qualquer um diria olhando para mim: «Este tem pinta! Tem algo de verdadeiramente positivo!» Seja como for, é extremamente simpático ouvir características destas no nosso século negativo, meus senhores.


(1) Esta frase sarcasticamente invertida refere-se ao pintor russo Nikolai Gay (1831-1894) e ao seu quadro Última Ceia, que Dostóievski achava transmitir uma ideia falsa.





cadernos do subterrâneo
trad. nina guerra e filipe guerra
assírio & alvim
2000


22 de junho de 2006

falso lugar #040


lição das árvores:
regressamos nus do abandono

e como o tempo nada devolve
pairamos sobre a morte
como frutos interrompidos
que ninguém
sabe colher

20 de junho de 2006

a poesia / per aage brandt


*

(Silêncio).


- Estás tão ausente.
- Também tu estás ausente.
- Diz-me porquê.
- Diz-me também tu porquê.
- Isso entristece-me tanto.
- E como pensas que me sinto.
- O mesmo te pergunto eu.
- És tu que me tornas ausente.
- Mas eu estou aqui.
- Eu também, deixa lá!


(Silêncio).


*



per aage brandt
de “livro da noite”
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004

17 de junho de 2006

falso lugar #039


Wassily Kandinsky
(Russian, 1866–1944),The Garden of Love (Improvisation Number 27), 1912
Alfred Stieglitz Collection, 1949 (49.70.1)




tudo muda
quando um verso rebenta
nos lábios
certos


14 de junho de 2006

falso lugar #038




cada palavra tua
é agora uma ilha

um minuto mágico
de matar silêncios

cresceu-te no olhar
um lugar de adeus

e dizes os nomes
dás-nos os gestos

que, afinal,
te ferviam no coração


30 de maio de 2006

falso lugar #037




esse brilho de cidade
que no rasto das estrelas se anuncia

ou o alquímico silêncio de uma duna
cravado
no olhar de um sábio

as papoilas,
os segredos
na lisa viagem do sangue
os mistérios vermelhos
de que se envenenam os rios

as ruidosas veias
que moram nas mãos solitárias

a morte
vestiu-se de prata
é
uma serpente
que sobe lenta
o último suspiro
da lua
e descansa aos pés
da eternidade dormente
das pedras


27 de maio de 2006

os livros / norman mailer


NORMAN MAILER, NOITES ANTIGAS


I

O LIVRO DE UM HOMEM MORTO

Pensamentos em bruto e violentas forças são o meu estado. Não sei quem sou. Nem aquilo que fui. Não ouço um único som. Abeira-se uma dor que há-de ser como nunca houve alguma…

Será este o medo que sustenta o universo? Será a dor o fundamento? Todos os rios veias de dor? Os oceanos, a minha mente inundada? Tenho uma sede como o calor da terra em fogo. Contorcem-se montes. Vejo ondas de chamas. Aluimentos, clarões, ondas de chamas.

A sede está nos rios do corpo. Os rios queimam, mas não se movem. Há carne - será carne? -debaixo de uma qualquer pedra aquecida. Ergue-se lava em campos consumidos pelo fogo.

Onde, em que gruta, se deram tais desmembramentos? Há bocas vulcânicas a despedir fogo, poços a borbulhar. Os ossos assentam como cascalho sobre a ferida.

Ser-se-á humano? Ou estar-se-á apenas vivo? Como uma folha de erva equivalente a toda a existência no momento em que é arrancada? Sim. Se a dor é o fundamento, uma folha de erva pode conhecer tudo quanto existe.

Um número ardente surgiu perante mim. A chama revelou uma orla tão isenta de vacilações como uma faca, e penetrei por esse ígneo sinal adentro. Em fogo comecei a fluir por entre a clara e ardente existência do número 2.

A dor entrou num latejar. Cada repouso entre cada pontada não era bastante ... Ah, o torcer da esperança, o dilacerar da fibra. Os meus órgãos tinham-se certamente distorcido, sim, e o guinchar do osso ao quebrar. Abriam-se portas sobre explosões.

A dor instalou-se na mais cintilante das luzes. Fiquei exposto à rocha ardendo. Demoníaco, o calor do sol e o sangue a ferver nas veias. Não mais voltaria a ser sangue? Foi então que a corrente dos fogos mais altos me deu a conhecer — pela própria intensidade — que não seria destruído. Tinha de haver qualquer existência do outro lado. Por conseguinte, deixei fugir os meus poderes enquanto carbonizavam no coração. Estes poderes moribundos podiam ainda dar vida a outras porções de mim. Porque eu divisava um fio a estremecer na escuridão, uma gavinha viva no carbono enegrecido das minhas carnes, tão fina como o mais delicado nervo, e, ao longo de cada dor, buscava aquele filamento com todo o requinte de angústia, até que a própria dor adquiriu tal esplendor que tive uma revelação. O filamento não era um fio, mas dois, enrolados entre si com imaculada subtileza. Enredavam-se um no outro durante os espasmos mais intoleráveis, e não obstante eram céleres a apartar-se ao primeiro alívio, e com tal tenuidade de movimentos que tive a certeza de presenciar a vida da minha alma (finalmente vista!) a dançar como poalha sobre as chamas.

A seguir tudo se perdeu de novo. As minhas entranhas estremeceram com uma desagregação oceânica, prestes a alijar toda uma multitude de gorduras, doçarias e sucos da velha carne encharcada em prazeres, com o frenesi de um traidor vomitando tudo sob a tortura. Abriria mão do que quer que fosse para cavalgar mais leve a próxima vaga de repulsa e, na escuridão de vagas de carne fustigando águas naturais de som, forcejava.

Não podia sepultar-me em tais enxofres. Não eram as emanações, mas sim o terror de sufocar; não era a morte pelo fogo, mas sim o solo a sepultar-me. Era a argila! Sobreveio uma visão da argila a vedar as narinas e a boca e os ouvidos, infiltrando-se nas órbitas ... Tinha perdido totalmente a visão do filamento duplo. Havia apenas eu próprio naquelas grutas sepultas e o martelar do meu intestino. Contudo, se eu estivesse destinado a ser soterrado no negrume daqueles gritantes e ferventes objectos, tinha logrado uma visão com que me atormentar. Porque me compenetrara da beleza da minha alma no preciso momento em que não podia alcançar o seu uso. Pereceria com tais ideias ao mesmo tempo que as obtivera?

Chegou então um momento de paz nesta tempestade e tumulto das vias respiratórias. Conheci a desolação solene do aplacado centro do furacão, e nessa calmaria vi com pesar que podia agora ser sábio sem vida na qual aplicar a minha sabedoria. Porque tinha uma perspectiva de antigos diálogos. Outrora tinha vivido como amo e escravo ... e agora um e outro estavam perdidos para toda e qualquer nova captura ... Ah, o diálogo perdido que nunca se tinha dado entre a minha parte melhor e a restante. O cobarde é que fora o amo. Houve então algo que abriu alas nas longas galerias do meu orgulho e obtive uma visão do fundamento da dor, uma visão tão bela quanto estreita. Mas agora os moinhos da injúria giravam de novo. Como uma serpente cujas entranhas se desintegraram, desisti, implorei paz e dei origem à minha sangrenta e coagulante história de convoluto e tortuoso estripado. Houve uma qualquer totalidade de mim que se me esvaiu do ventre, e vi a figura ardente do 2 dissolver-se em chamas. Não mais seria aquilo que fora. A minha alma estava dolorida, humilhada e enfurecida por essa privação, e contudo arrogante como a própria beleza. Porque a dor cessara e eu era novo. Possuía uma vez mais um corpo.





noites antigas
trad. teixeira de aguilar
publicações europa- américa
1983



25 de maio de 2006

falso lugar #036


cigarro



no dia
em que as luzes se apagaram
tinha um cigarro
na mão

um amigo

que me disse tudo
até à cinza

23 de maio de 2006

falso lugar #035

Alessandro Allori , detail: The Fall of Phaethon, 1555/1559




é preciso dizer
que não há mais nada a celebrar
nem os homens
nem as ideias
nem o tempo

essa fenda
que te atravessava a vida
esse rasgão generoso
que te aproximava os céus
fechou-se

estás perante o escuro silêncio
das coisas mortas

não abandones os espelhos

ainda que quebrados
eles são o palácio derradeiro
o último jardim
a gota impossível
de secar

guarda aí a semente
as palavras
as vozes
as imagens

porque o amor
é um minucioso trabalho do tempo
em direcção à morte


20 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


tríptico nómada



I — nova iorque, um


1

outras manhãs
molha o papel na cinza dizendo: «os meus,
ninguém que adivinhasse a mesa rasgada, as meias
balões verdes de areia pesando ao contrário dos olhos ao
pénis, demasia fácil.


2

descruzando o mostrador, para passar
o lápis partido a meio da boca
«seios, igualmente desertos
na quadragésima segunda rua
anos: ardendo
as botas, de cavalaria


3

não tocamos na vaca
lenço preso à narina mais branca
o cuspo manchou todas as vitrinas
sentando-se, que o sangue apodrece
o arame dos testículos
apareceu por acidente adormecido
na janela com chuva


4

ou que não gira, mas
uma palpitação colada aos seios da cama
o polícia negro maneja a ventoinha sobre
retratos, uma moldura mostrando
a lápis, assinado rembrandt.


5

alimentando-se, outras
de aço fundido atrás dos anjos
desabotoando as rosas no urinol azul
helicóptero justamente às 5 e trinta apertando
a narina mais larga contra o peito
dos arranha-céus
«a boca,
urna pedra acaba de cair muito mais tarde.


6

por lentidão ou por ser
o olho da vaca acende e apaga lápis
aparados no televisor uniformernente liso

o perfeito animal
entre as coxas do peixe suor branco
alheio à solidão.


7

por times square o tempo de virar
urna narina ao lado do silêncio
alisando as verrugas molha na cinza
o pénis da hora
na vitrina inconsolável presidente violeta
«são sensíveis,
animal perfeito, ninguém que descubra
o enxame inclinado nas axilas


8

a boca abre-se em duas cores com
plernentares acrílicas ligeiramente so
brepostas;
a chávena na ponta do braço direito a
vança hesitando e o líq
uido quente enfia no buraco da carne
uma lufada de casas intermitentes
«pequeno almoço em tiffany’s».


9

apenas o ar, dedos
enfiados no anel manejando o arame visível, até
as fezes do néon finalmente dissolvem
penumbra, o cacho «meramente,
aperta nos lábios uma saliva incómoda

10

espalhando o alcatrão por sobre a zona
entre as nádegas o cuspo mais facilmente seca
a viúva que o gelo conservou sem perca
«ao frio,
outras
agarrando nos dentes a pedra portátil
espera que o mundo caminhe ao contrário
em direcção ao esperma deixado
vagina sem mãe.




antónio franco alexandre
(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996

18 de maio de 2006

falso lugar #034



Os dias sucedem-se como marés, espraiam-se como portas nesse palácio absurdo que é a vida. Cada uma encerra a surpresa do futuro ou a agressão violenta do passado, numa desordem que nos domina sempre na razão inversa da vontade e do desejo.

Há pontos no tempo que são como lupas apontadas à minúcia desse caos. E é por aí que a loucura ronda e nos seduz ao limiar dos abismos, numa espécie de sonolência inocente onde todos os pensamentos concorrem para a realização desse vitral que é a alma: domínio de todas as sombras e de todos os brilhos.


16 de maio de 2006

10 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


II — paris, sumário


1

paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel do Brasil ao 6°
andar sem as
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio ao dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure


2

paris, o desemprego. açorda de gente cm pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão no teu rosto repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.


3

paris, astrologia, antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível.
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Saturno no quadrante de Vé
nus.


4

volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner`s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.


5

paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
dc tal i qual no brr
aço, & no pinheiro cartazes
délecê.


6

asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna, acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.




antónio franco alexandre
(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996

9 de maio de 2006

falso lugar #032


quisera tão só esse dom de cegar, de luz trespassar as noites e no ventre do mundo correr mansamente

como se os navios chamassem e um oceano morresse no vazio dos passos, como se fosse a hora de me transformar numa ilha onde só tu naufragasses

7 de maio de 2006

falso lugar #031


que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que o silêncio se curve
como um animal sem voz


4 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


III — veneza , travessia


porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, ii manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros, dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios, dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um re de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento, a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas, invento, na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento, manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
&. as mãos espalhavam a pele,
cobriam cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul, e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento, o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas, horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas, um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava, inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.




antónio franco alexandre

(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996


3 de maio de 2006

falso lugar #030


um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos

no chão
sombras brancas sem raiz

1 de maio de 2006

falso lugar #029


O tempo é uma fortaleza de papel. Todos os passos se resolvem em caminhos esquecidos. Todos os horizontes se erguem como livros guardados. Leio tudo o que me cerca, como se tivesse que esconjurar impressionantes silêncios. Tenho aqui o mundo e aqueles que lhe traçaram a órbita. Tenho aqui as minhas noites e os meus dias, os anos e as estações, as latitudes e as longitudes... Tenho aqui os fundamentais pontos que me marcaram o norte e o sul.

Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.

Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.


27 de abril de 2006

a poesia / luís buñel



Uma traição inqualificável


Há já um ano que eu trabalhava na minha obra, na minha grande obra. Todos os dias investia cinco, seis, dez horas neste trabalho que já começara a ser disputado pelas melhores revistas literárias do mundo inteiro. Os móveis, o soalho e os livros do meu quarto compraziam-se vendo-me prosseguir esta obra genial. Mal me sentava, chegavam-se a mim a mesa, a biblioteca e a cama, pipilando de contentes. Sobretudo a biblioteca aproximava-se ao máximo, em pontas, e arqueando as lombadas dos livros, na atitude da grande espectativa. Uma aranha que trabalhava numa grande casa de construção ao canto da parede, deslizava pela polé do seu andaime e acenava-me com as patas.

O meu único inimigo, provocador e brigão, era o vento. Quase todas as noites, antes de entrar no meu quarto, deixava-o a silvar alegremente abraçado a um poste da rua, ou entretido com os papéis que pastavam pela calçada. Mas, mal eu me despia, e a cadeira complacente sacudia o pó e abria os braços para me receber, o vento começava a bater violentamente contra a janela, tentando insinuar-se por alguma fenda, ou abri-la à força; a minha janela, porém, cruzava bem os seus dois rudes e únicos dedos, e mofava do vento. Este, para vingar-se, abanava as paredes com ímpeto selvagem, assobiava estrepitosamente e arrojava punhadas de pó e pedra contra os vidros. Eu, mantinha-me equânime e continuava a trabalhar.

Numa noite, por fim, o vento jurou-me que, se o deixasse entrar e apreciar devidamente a minha obra, nunca mais me aborreceria, antes pelo contrário: trazer-me-ia toda a casta de perfumes e de músicas, e afagaria o meu labor.

Excitado por esta proposta, e, também, forçoso é confessá-lo, pelo legítimo orgulho de ver a minha obra ser alvo de tanto interesse da parte de tão importante personagem, resolvi aceder. O vento, ululando de alegria, deu um giro de 25° e fez repicar todos os sinos da cidade numa corrida triunfal. Não contente com isso, alardeou de nigromante. Três curas deslizavam pela rua: transformou-os em outros tantos guarda-chuvas invertidos. Das ruas e das casas fez Himalaias envoltos nas suas nuvens, e nas mesas dos cafés nasceram rodilhas, títeres e outros objectos da Grande Bijutaria do Lixo.

Abri a janela.

O vento, grotesco, embateu contra as paredes e meteu o nariz por todo o lado. Onde causou verdadeiro terror foi no cesto dos papéis; descansavam tranquilos e, ao darem pela presença do monstro, assustados, endoidecidos, treparam uns por cima dos outros, fizeram remoinho e fugiram em todas as direcções, acoitando-se no balde e debaixo do armário. Ë que o vento é o gato dos papéis.

Francamente: fiquei mosca com tanta informalidade e tão pouco interesse em folhear a minha obra, pelo que o admoestei com severidade. Então, fingindo o maior cuidado, revistou milhares de resmas de papel, fazendo-as estralejar como um baralho de cartas; subitamente, lançou-as no espaço, num ápice, todas de uma só vez, através da janela estupefacta, que abria a boca de assombro, e saiu atrás delas.

Fiquei pasmado, insensível, desencadernado para sempre. Levara a minha obra! A minha mais definitiva obra voava a caminho do horizonte, convertida em gaivota!

Jurei vingar-me sem delongas, e logo atinei como. Quando o vi dormir no telhado com tal estrépito de roncos que as próprias chaminés bocejavam, puz outra janela, que ao mais ligeiro sopro se desengonçava. E ele caiu na rede.

Como habitualmente, assim que acordou lançou-se contra, mas viu-se enleado, derrotado, encarcerado nas frestas.

Há anos que geme amargamente pedindo-me a liberdade. Eu, inflexível, ali o manterei preso aos interstícios da janela, sempre fechada e certa de si mesma. Comigo não se brinca.





luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977



26 de abril de 2006

falso lugar #028

das viagens


regresso ao livro
que me declara sábio

que não me abandonem
os ventos
quando de novo navegar
o marítimo corpo
da ausência


é que me abro
à oração dos desertos
e sigo a minúcia dos milagres
até ao deslumbre
do que morre


(que torre é esta
que se atravessa na madrugada
e me serve o oculto canto
da paisagem que te esconde?)



22 de abril de 2006

os livros / samuel beckett



SAMUEL BECKETT, NOVELAS E TEXTOS PARA NADA



O calmante

Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.
(…)




novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006


21 de abril de 2006

falso lugar #027


era um passo novo
um timbre de rua nova
numa cidade calada

a tua mão na água dormente
a dança do teu olhar
sobre o peso

do tempo sábio
segui-te o sonho
como uma ave

e regressei
ainda mais só



18 de abril de 2006

falso lugar #026



eu queria uma grande manhã, uma lúcida manhã sem cinzas, luminosa, quase quente, donde fosse possível avistar as brancas montanhas do tempo, donde fosse possível olhar o princípio de todos os caminhos e esperar.

e que não fosse tarde, que nunca fosse tarde nos seres amados, nem nos lugares por onde passámos e, nus, deixámos os olhos como uma nuvem sobre a morte.

12 de abril de 2006

a poesia / antónio josé forte



MEMÓRIA


À flor da terra a flor de fumo
dos meus cigarros adolescentes
fumados amorosamente entre fantasmas

desse tempo
os meus pulmões que dançam
os meus olhos de desobediência civil
fascinados
que saúdam o arco histérico do desejo

o meu nome que flutua
na orla do furor

desse tempo
uma paisagem de nuvens inventadas
para as minhas aves altíssimas
suspensas sobre a morte

chuva do princípio do mundo
escrita na minha pele
com a língua das tempestades
todas as ruas secretas
por onde não passa
o manequim de patas de alcatrão
devorador do ar

eu beijei o crânio azul da noite
ajoelhado numa bandeira ardente
entre a bela e o monstro
dormi entre frases imensas e bárbaras
e puríssimas
pronunciadas pelo mistério

desse tempo
uma onda de silêncio deslumbrante
onde voam flores negras
quando anoitece do lado do amor
e um homem com passos escarlates
que atravessa o nevoeiro

agora a sombra no meu peito
de um avião que passa
à velocidade da erupção dos teus cabelos
quando amanhece neles

como uma coroa de versos
na estátua jazente do único
a cabeça voltada para o lado intelectual da morte
os olhos muito abertos para o pranto de súbito
todos os nus uma criança incluída
presos por um fio de sangue
definitivamente ás estrelas
e a minha assinatura do fígado sobre as águas
em vez do meu nome leiam
Mil Crimes de Amor numa torre de marfim

eu sei
uma pequena multidão petrificada
ameaça escurecer os rostos os mais belos
é ela que avança contra os relógios de sol

eclipse total se não há
espelhos para as insónias negras
se não há para a biografia completa do homem
um grande amor da cama à música das esferas
passando por um tremor de terra





uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
lisboa 2003

9 de abril de 2006

falso lugar #025



é Verão no meu sangue e o corpo é o quadrante dum relógio mágico onde todas as horas são marcadas com sinais de fogo.

nas veias queimadas, só o carinho da Lua – essa velha surda e cega ! – que na sua bondade de fêmea me transforma os pecados em paixão e faz dos meus gritos orações poderosas que os deuses escutam e aceitam.


5 de abril de 2006

falso lugar #024


dentro do tempo, o tempo

o cheiro do mundo
quando me cantas essa rua antiga

já por aqui morri
e vivo
regresso ao beijo seguro
e fiel



4 de abril de 2006

falso lugar #023

a casa



e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta


agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados


há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória


no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar


ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio


a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre


1 de abril de 2006

os livros / roland barthes



ROLAND BARTHES, INCIDENTES



Hoje, 17 de Julho, está um tempo esplêndido. Sentado no banco, pisco os olhos, por brincadeira, como fazem as crianças, e vejo uma margarida do jardim, com todas as proporções alteradas, estender-se sobre a planície em frente, do outro lado da rua.
A rua corre como uma ribeira tranquila; atravessada de quando em quando por uma motocicleta ou um tractor (são estes, hoje em dia, os verdadeiros sons do campo, não menos poéticos, afinal, que o cantar dos pássaros: sendo raros, fazem sobressair o silêncio da natureza e imprimem-lhe a marca discreta de uma actividade humana), a rua lá vai irrigar uma zona mais afastada da aldeia. Já que esta aldeia, apesar de modesta, tem as suas zonas periféricas. Não será sempre a aldeia, em França, um espaço contraditório? Restrita, centrada, ela não deixa de se prolongar até bastante longe; a minha, muito clássica, tem apenas um largo, uma igreja, uma padaria, uma farmácia e duas mercearias (hoje em dia, devia dizer dois self-services); mas tem também, por uma espécie de capricho que perturba as leis aparentes da geografia humana, dois cabeleireiros e dois médicos. França, país de medida? Digamos antes — e isto a todos os níveis da vida nacional: país das proporções complexas.
Do mesmo modo, o meu Sudoeste é extensível, como aquelas imagens que mudam de sentido consoante o nível da percepção em que decido captá-las. Conheço assim, subjectivamente, três Sudoestes.
O primeiro, muito vasto (uma quarta parte da França), é-me designado instintivamente por um sentimento tenaz de solidariedade (pois estou longe de o ter visitado na sua totalidade): qualquer notícia que me chegue desse espaço toca-me de uma forma pessoal. Ao pensar nisto, parece-me que a unidade desse grande Sudoeste é para mim a língua: não o dialecto (pois não conheço nenhuma langue d’oc); mas o sotaque, porque não há dúvida que o sotaque do Sudoeste formou os modelos de entoação que marcaram a minha primeira infância. Este sotaque gascão distingue-se para mim do outro sotaque meridional, o do Sul mediterrânico; este tem, na França de hoje, algo de triunfante: sustentado por todo um folclore cinematográfico (Raimu, Fernandel), publicitário (azeites, limões) e turístico; o sotaque do Sudoeste (talvez mais pesado, menos cantante) não tem esses títulos de modernidade; para se ilustrar tem apenas as entrevistas dos jogadores de rugby. Eu próprio não tenho sotaque; no entanto, ficou-me da infância um «meridionalismo»: digo «socializmo» e não «socialismo» (quem sabe se assim não serão dois socialismos?).
O meu segundo Sudoeste não é uma região; é apenas uma linha, um trajecto vivido. Quando, vindo de Paris de automóvel (uma viagem que fiz mil vezes), passo Angoulême, um sinal avisa-me que passei o limiar da casa e que entro no país da minha infância; um pequeno bosque de pinheiros de um dos lados, uma palmeira no pátio de uma casa, uma determinada altura das nuvens que dá ao terreno a mobilidade de um rosto. Então começa a grande luz do Sudoeste, nobre e subtil ao mesmo tempo; nunca é cinzenta, nunca é baixa (mesmo quando o sol não brilha), é uma luz-espaço, definida menos pelas cores com as quais afecta as coisas (como no outro Sul) do que pela qualidade eminentemente habitável que dá à terra. Não encontro outra forma de o dizer; é uma luz luminosa. É preciso vê-la, a essa luz (eu diria quase ouvi-la, de tal modo é musical), no Outono, que é a estação soberana deste país; líquida, brilhante, dilacerante porque é a última luz bela do ano, iluminando cada coisa na sua diferença (o Sudoeste é um país de micro-climas), preserva este país de toda a vulgaridade, de toda a gregaridade, torna-o impróprio para turismo fácil e revela a sua aristocracia (não é uma questão de classe, mas de carácter). Dizendo isto de uma maneira tão elogiosa, sinto um certo escrúpulo: não haverá nunca momentos ingratos, neste clima do Sudoeste? Há certamente, mas, para mim, não são os momentos de chuva ou de tempestade (frequentes, no entanto); não são apenas os momentos em que o céu está cinzento; os acidentes da luz, aqui, parece-me, não provocam qualquer «spleen»; não afectam a alma, mas apenas o corpo, por vezes viscoso de humidade, embriagado de clorofila, ou fatigado, extenuado pelo vento de Espanha que torna os Pirinéus muito próximos de um tom violeta: sentimento ambíguo, em que o cansaço acaba por ter algo de delicioso, como acontece sempre que é o meu corpo (e não o meu olhar) a perturbar-se.
O meu terceiro Sudoeste é ainda mais reduzido: é a cidade onde passei a minha infância, e depois as minhas férias de adolescente (Bayonne), é a aldeia onde volto todos os anos, é o trajecto que liga uma à outra e que eu percorri tantas vezes, para ir à cidade comprar charutos ou artigos de papelaria, ou à estação buscar um amigo. Posso escolher entre várias estradas; uma, mais longa, passa pelo interior das terras, atravessa uma paisagem em que se misturam o Béarn e o país Basco; outra, uma deliciosa estrada de campo, segue o cume das encostas que dominam o Adour; do outro lado do rio, vejo uma fileira contínua de árvores, escuras por estarem longe: são os pinheiros das Landes; uma terceira estrada, muito recente (data deste ano), corre ao longo do Adour, na sua margem esquerda: não tem qualquer interesse, a não ser o da rapidez do trajecto e, por vezes, de fugida, o rio, muito largo, muito suave, ponteado pelas pequenas velas brancas de um clube náutico. Mas a estrada que eu prefiro e que de vez em quando escolho seguir por prazer, é a que acompanha a margem direita do Adour; antigamente, servia para rebocar barcos, e vêem-se algumas quintas e casas bonitas. Certamente gosto dela por ter, pela sua natureza, essa dosagem de nobreza e familiaridade que é própria do Sudoeste; poder-se-ia dizer que, ao contrário da sua rival da outra margem, é ainda uma verdadeira estrada, não uma via funcional de comunicação, mas como uma experiência complexa, onde têm simultaneamente lugar um espectáculo contínuo (o Adour é um belo rio desconhecido) e a memória de uma prática ancestral, a de andar, a penetração lenta e como que ritmada da paisagem, que imediatamente adquire outras proporções; retoma-se neste ponto o que ficou dito no princípio, e que é no fundo o poder que tem este país de frustrar a imobilidade e a rigidez dos postais; não vale a pena fotografar; para avaliar, para amar, é preciso vir e ficar, de modo a poder percorrer todas as variações dos lugares, das estações, dos climas, das luzes.
Dir-me-ão: limita-se a falar do tempo, de impressões vagamente estéticas, em todo o caso puramente subjectivas. Mas os homens, as relações, as indústrias, os comércios, os problemas? Mesmo como simples residente, não se apercebe de nada disso? — Entro nestas regiões da realidade à minha maneira, quer dizer, com o meu corpo; e o meu corpo é a minha infância, exactamente como a fez a história. Essa história proporcionou-me uma juventude provincial, meridional, burguesa. Para mim, estas três componentes são indistintas; a burguesia é para mim a província, e a província é Bayonne; o campo (da minha infância), é sempre o interior de Bayonne, rede de excursões, de visitas e de histórias. Por isso, na idade em que a memória se forma, das «grandes realidades» só aproveitei a sensação que me provocavam: alpercheiros, cansaços, sons de vozes, passeios, luzes, tudo aquilo que, do real, é de certo modo irresponsável e não tem mais nenhum sentido a não ser o de mais tarde formar a recordação do tempo perdido (completamente diferente foi a minha infância parisiense: cheia de dificuldades materiais teve, se assim se pode dizer, a abstracção severa da pobreza, e não tenho quaisquer «impressões» do Paris dessa época). Se falo deste Sudoeste exactamente como a sua recordação é refractada em mim, é por acreditar na fórmula de Joubert: «Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como recordamos».
Estas insignificâncias são, portanto, como as portas de entrada dessa vasta região de que se ocupam o saber sociológico e a análise política. Nada, por exemplo, tem mais importância nas minhas recordações do que os cheiros desse bairro antigo, entre Nive e Adour, a que se chama o Petit-Bayonne: todos os objectos do pequeno comércio ali se misturam, compondo uma fragância inimitável; a corda das sandálias (aqui, não se diz «alpergatas»), trabalhada por velhos Bascos, o chocolate, o azeite espanhol, o ar confinado das lojas obscuras e das ruas estreitas, o papel envelhecido dos livros da biblioteca municipal, tudo isso funcionava como a fórmula química de um comércio desaparecido (ainda que este bairro conserve um pouco desse encanto antigo), ou, mais exactamente, funciona hoje como a fórmula dessa desaparição. Através do cheiro, é a própria mudança de um tipo de consumo que eu apreendo: as sandálias (de sola tristemente forrada a borracha) já não são artesanais, o chocolate e o azeite compram-se fora da cidade, num supermercado. Acabaram os cheiros, como se, paradoxalmente, os progressos da poluição urbana expulsassem os perfumes domésticos, como se a «pureza» fosse uma forma pérfida da poluição.
Outra introdução: conheci, na minha infância, muitas famílias da burguesia de Bayonne (Bayonne, nessa época, tinha algo de balzaquiano); conheci os seus hábitos, os seus ritos, as suas conversas, o seu modo de vida. Essa burguesia liberal era cheia de preconceitos, e não de capital; havia uma espécie de distorção entre a ideologia dessa classe (francamente reaccionária) e o seu estatuto económico (por vezes trágico). Esta distorção, nunca a reteve a análise sociológica ou política, que funciona como um passador largo e deixa fugir as «subtilezas» da dialéctica social. Ora essas subtilezas — ou esses paradoxos da História — mesmo não sabendo formulá-los, sentia-os: já «lia» o Sudoeste, percorria o texto que vai da luz de uma paisagem, do peso de um dia enlanguescido sob o vento de Espanha, a todo o tipo de discurso, social e provincial. Porque «ler» um país é antes de mais nada descobri-lo através do corpo e da memória, segundo a memória do corpo. Penso que é a esse vestíbulo do saber e da análise que está destinado o escritor: mais consciente dos próprios interstícios da competência. É por isso que a infância é a via real para através dela conhecermos um país da melhor maneira. No fundo, só há País se for o da infância.

1977, L’Humanité



incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987


falso lugar #022



grandes navios no horizonte
e
nenhum mar por perto!

30 de março de 2006

falso lugar #021




sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome


a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?



foto de abbas kiarostami

29 de março de 2006

os livros / c. s. lewis

C. S. LEWIS, DOR


UM

Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é a de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.
Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender.
É tudo tão desinteressante. E no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.
Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm muito “a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mau. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita punhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno.
No ressalto passamos às lágrimas e ao patético. O sentimentalismo das lágrimas. Quase lhes prefiro os momentos de agonia. Pelo menos esses são límpidos e honestos. Mas o banho de autocorniseração, esse lamaçal, o repugnante prazer, pegajoso e adocicado, de lhe ceder — desgosta—me. E, mesmo quando a ele me abandono, sei que só pode levar-me a deturpar a imagem da própria H. Dê eu mão livre a essa disposição e em poucos minutos terei trocado a mulher real por uma mera boneca sobre a qual choramingar. Graças a Deus, a memória que dela tenho é ainda demasiado forte (mas será sempre demasiado forte?) para me permitir chegar a tal ponto.
Porque H. não era nada assim. O seu espírito era flexível, rápido e enérgico como um leopardo. Paixão, ternura ou dor, nada conseguia desarmá-lo Farejasse ele a mínima baforada de hipocrisia ou pieguice, logo saltava e nos deitava por terra sem nos dar tempo sequer a perceber o que tinha acontecido. Quantas das minhas bolhas de autocomiseração não fez ela rebentar?! Bem depressa aprendi a deixar-me de baboseiras ao falar com ela, a não ser pelo puro prazer — e aí volta a punhalada do ferro em brasa — de a ver apanhar-me em falta e rir-se de mim, Nunca fui tão pouco tolo como enquanto apaixonado de H.
E também nunca ninguém me falou da indolência da dor. Excepto no meu trabalho, onde o mecanismo parece continuar a mover-se praticamente como de costume, abomino o mínimo esforço. Não apenas escrever mas até ler uma carta já é demais. Até barbear-me. Que importa agora se o meu queixo está áspero ou macio? Diz-se que o homem infeliz quer distracções, algo que o faça esquecer-se de si próprio. Talvez, mas só na medida em que um homem, completamente derreado, poderá precisar de mais um cobertor numa noite gelada. Vai preferir ficar para ali a tiritar que levantar-se para o ir buscar. É fácil entender por que motivo os solitários se tornam desleixados e, finalmente, sujos e nojentos.
(...)


dor
trad. carlos grifo babo
grifo
1999

26 de março de 2006

falso lugar #020

é como acordar.

mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...

esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.

qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.

e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.

e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…

podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.

como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.

23 de março de 2006

falso lugar #019


passados



não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.


22 de março de 2006

os livros / oscar wilde


OSCAR WILDE, O RETRATO DE DORIAN GRAY



Prefácio

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que sabe traduzir de outra maneira ou com material diferente a sua impressão das coisas belas.
A mais alta, assim como a mais baixa, forma de crítica é uma autobiografia.
Aqueles que encontram feias significações nas coisas belas são corruptos sem serem encantadores. É um defeito.
Aqueles que encontram belas significações nas coisas belas são cultos. Para esses há esperança. São os eleitos aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não há livros morais nem imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Nada mais.
A antipatia do século XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem faz parte do assunto do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito dum meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar o que quer que seja. Até as coisas verdadeiras se podem provar.
Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um imperdoável maneirismo de estilo.
O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
O pensamento e a linguagem são para o artista instrumento de arte.
O vício e a virtude são para o artista materiais de arte.
Sob o ponto de vista da forma, o tipo de todas as artes é a arte do músico. Sob o ponto de vista do sentimento, o tipo é a profissão de actor.
Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo.
Aqueles que descem além da superfície fazem-no por seu próprio risco.
O mesmo sucede àqueles que lêem o símbolo.
É o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflecte.
A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.
Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, enquanto ele a não admira. A única desculpa que merece quem faz uma coisa inútil é admirá-la intensamente.
Toda a arte é absolutamente inútil.



o retrato de dorian gray
trad. de januário leite
círculo de leitores
1972

falso lugar #018




o tempo é uma armadilha na forma daqueles que mais amamos.

21 de março de 2006

a poesia / henry deluy






a memória de ti - não a tua imagem.


*

depois chorar.












henry deluy
de “Primeiras Sequências”
poetas em mateus
quetzal
2002


20 de março de 2006

falso lugar #017



Sandro Botticelli, Birth of Venus (detail)




hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem
a sombra
chegava



19 de março de 2006

17 de março de 2006

frida kahlo


“the frame” 1938


“na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todas as jarras
no meu peito
fora, dentro
no tinteiro na dificuldade de escrever na maravilha dos meus olhos, nas últimas luas do sol (mas o sol não tem luas) em tudo e dizer em tudo é estúpido e magnífico DIEGO na minha urina DIEGO na minha boca no meu coração na minha loucura no meu sonho no mata-borrão na ponta da caneta nos lápis nas paisagens na alimentação no metal na imaginação nas doenças nas montras nas suas astúcias nos seus olhos na sua boca nas suas mentiras. “

frida kahlo



(diego & frida
j.m.g. le clézio
trad. manuel Alberto
relógio d´água
1994)

16 de março de 2006

a poesia / josé tolentino mendonça



SIDE OF THE ROAD



Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos



josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005



15 de março de 2006

falso lugar #015

tarde antiga



oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas

o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda

as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante

que durante tanto tempo
me encheram os olhos

numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras

escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal

14 de março de 2006

falso lugar #014



automatic winter

quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

e tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados vermelhos, nem ao longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.

13 de março de 2006

os livros / ortega y gasset


ORTEGA Y GASSET, ESTUDOS SOBRE O AMOR



A POESIA DE ANNA DE NOAILLES

Falemos um pouco da mais poética das condessas e da mais condessa das poetisas. Anna de Noailles é hoje a maior tecedeira do lirismo francês. Com um fogo exemplar, laboriosa, constante, tece cada lustro os versos de um livro que se parece sempre com os anteriores - tão belo, tão ardente, tão voluptuoso. Dir-se-ia que o livro precedente se desfez e foi necessário voltar a tecê-lo. Anna de Noailles é, literariamente, Penélope.
O último volume chama-se As forças eternas. Estas forças eternas são, antes de mais, o amor e a morte. Não se creia, no entanto, que a condessa esperou até agora para cantar estes poderes essenciais. A sua obra gravitou sempre em torno deles, oscilando deleitosamente entre um e outro.
São quatrocentas páginas de poesia minuciosa. Chega até nós um livro repleto de flores, de astros, de abelhas, de nuvens, andorinhas e gazelas. Cada poeta tem um reportório de objectos que são os seus utensílios profissionais. Tal corno o deita-gatos transumante viaja com o seu berbequim e os seus grampos, a condessa precisa de se deslocar com toda essa bagagem para poder realizar as suas preciosas fantasmagorias. Sobre coisas tão bonitas não é possível dizer coisas mais bonitas:

L’aheille aux bonds chantants, vigoureusernent molie,

parece nos seus voos perseguir-se a si mesma.
A andorinha passa com os seus gritos de pássaro que alguém assassina:

Je connais bien ce cri brisant de l’hirondelle
Comme une flèche oblique ancrée au coeur du soir.


Os campanários são doces colmeias de abelhas argentinas.
As rãs são cigarras das águas.
A chuva é um sol que brinca com raios de metal.
Na viagem,

Tes rêveuses prunelles
Contemplaient l´orizon, flagellé et chassé
Par Ie vent, qui, cherchant ton visage oppressé
Faisait bondir sur toi ses fluids gazelles.


A pequena sineta que anuncia o jantar dá saltos de cabrita louca atada à sua corda.
Na noite límpida, os astros são fragmentos do dia.
Há nos versos de Anna de Noailles, tal como na sua prosa, uma excessiva e monótona preocupação com o amor. O amor é tudo; diz várias vezes neste volume:

Amour, tâche pure e certaine,
Acte joyeux et sans remord;
Le seul combat contre la mort,
La seule arme proche et lointaine
Dont dispose, en sa pauvreté,
L’êlre hanté d’éternité.

Este erotismo tão exclusivista cansa um pouco o leitor que não possua uma disposição tão continuada para o delíquio apaixonado. Ao percorrer estas páginas, pensamos mais de uma vez que se trata de uma curiosa ilusão de óptica padecida por este poeta. Não é que o amor seja, em verdade, tudo, mas a eloquência poética só brota em Anna de Noailles de estados de espírito voluptuosos.

Plus je vis, oh mon Dieu, moins je peux exprimer
La force de mon coeur; l´infinité d´aimer,
Ce languissant ou bien ce bondissant orage.
Je suis comme l‘étable où entrent les rois mages
Tenant entre leurs mains leurs cadeaux parfumés.
Je suis cette humble porte ouverte sur le monde;
La nuit, l´air, les parfums et l´étoile m´inondent.

Esta perpétua cantilena voluptuosa flui como um rio denso pelo leito do verso. Não é, pois, propriamente amor; é simplesmente voluptuosidade. As suas metáforas são quase sempre do mesmo tipo; em quase todas se alude ao estremecimento erótico e repercute o espasmo. A alma que nesta poesia se expressa não é espiritual; é, pelo contrário, a alma de um corpo que se diria vegetal.
Se tentarmos imaginar a alma de uma planta, não lhe poderemos atribuir ideias nem sentimentos: não haverá nela mais do que sensações, e mesmo estas, vagas, difusas, atmosféricas. A planta sentir-se-á bem sob um céu benigno, sob a mão branda de um vento suave; sentir-se-á mal debaixo de um temporal, açoitada pela neve inverniça. A voluptuosidade feminina é, talvez, de todas as impressões humanas, a que nos parece mais próxima da existência botânica.
Anna de Noailles sente o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim. Daí a sua prodigiosa sensibilidade para as mudanças atmosféricas, climas, estações. Não obstante a sua insistência amorosa, é revelador que o homem não apareça nunca desenhado no fundo aéreo desta poesia. Em contrapartida, intervêm os seres anónimos e difusos: o vento, a humanidade, o azul, o silêncio.

Le flot léger de l´air vient par ondes dansantes...


Não caberá esta ideia perfeitamente no coração de uma papoila?
(…)



Ortega y Gasset
Estudos Sobre o Amor
Relógio d´Água
2002





12 de março de 2006

falso lugar #013



nunca sobrava uma sílaba. ternamente poderosos, revíamos o mundo do mais alto lugar.

nas manhãs frias de sábado,
a noite ainda na pele.

11 de março de 2006

falso lugar #012



nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.

e será esse o teu Inverno.

10 de março de 2006

a poesia / al berto

Quinta de Santa Catarina


3.

pouco mais há a dizer, caminho largando os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros lugares já estivera triste, por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. nem mesmo a vida, nenhuma morte, na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever, estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.



Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim
1997

9 de março de 2006

falso lugar #011


na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.

ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.


falso lugar #010

cedo a esse quase esplendor das coisas que brevemente são eternas. debruço-me sobre esse tempo estático e atinjo a compreensão da morte.

7 de março de 2006

os livros / conde de lautréamont


ISIDORE DUCASSE CONDE DE LAUTRÉAMONT, CANTOS DE MALDOROR


Durante toda a minha vida vi os homens, de ombros estreitos, fazerem, sem uma única excepção, actos estúpidos e numerosos, embrutecerem os seus semelhantes e perverterem as almas por todos os meios. Aos motivos das suas acções chamam glória. Ao ver estes espectáculos, quis rir como os outros; mas isso, estranha imitação, era impossível. Peguei num canivete, cuja lâmina tinha um afiado gume, e rasguei a carne nos sítios onde os lábios se reúnem. Por um momento julguei ter atingido o objectivo. Contemplei num espelho esta boca ferida por minha própria vontade! Era um erro! O sangue que abundantemente corria dos dois ferimentos não deixava aliás distinguir bem se era realmente aquele o riso dos outros. Mas, após alguns instantes de comparação, vi claramente que o meu riso não se assemelhava ao dos humanos, que eu não ria. Vi os homens, de cabeça feia e terríveis olhos enterrados na órbita escura, ultrapassarem a dureza do rochedo, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência da juventude, a fúria insane dos criminosos, as traições do hipócrita, os comediantes mais extraordinários, a força de carácter dos padres, e os seres mais escondidos por fora, os mais frios dos mundos e do céu; vi-os cansar os moralistas para descobrirem o seu coração e fazerem recair do alto sobre eles a cólera implacável. Vi-os todos ao mesmo tempo: ora, com o mais robusto punho erguido para o céu, como o de uma criança, já perversa, contra a mãe, provavelmente incitados por algum espírito do inferno, com os olhos carregados de um remorso agudo mas cheio de ódio, num silêncio glacial, sem ousarem emitir as meditações vastas e ingratas que abrigavam no peito, tão plenas de injustiça e de horror elas eram, e entristecerem de compaixão o Deus de misericórdia; ora, em cada momento do dia, desde o começo da infância até ao fim da velhice, espalhando inacreditáveis anátemas sem senso comum contra tudo o que respira, contra si próprios e contra a Providência, prostituírem as mulheres e as crianças e desonrarem assim as partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares erguem as suas águas, engolem as tábuas nos seus abismos; os furacões e os tremores de terra derrubam as casas; a peste e as diversas doenças dizimam as famílias em oração. Mas os homens não dão por isso. Também os vi a corarem e empalidecerem de vergonha pelo seu comportamento sobre a terra; raramente. Tempestades, irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita, imagem do meu coração; terra, de misterioso seio; habitantes das esferas; universo inteiro; Deus, que com magnificência o criaste, é a ti que eu invoco: mostra-me um homem que seja bom!... Mas que a tua graça multiplique por dez as minhas forças naturais; pois, perante o espectáculo desse monstro, posso morrer de espanto; morre-se por menos.


Fenda
1988
Trad. Pedro Tamen

5 de março de 2006

falso lugar #008

ainda que nunca mais anoitecesse e no coração de um pensamento (de um pensamento súbito) cantasse um navio de areia
ainda que na corrente nada voltasse, nada soubesse voltar

4 de março de 2006

a poesia / herberto helder




Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.



Le poème continu
somme anthologique
Institut Camões / Chandeigne
Paris, 2002