Uma traição inqualificável
Há já um ano que eu trabalhava na minha obra, na minha grande obra. Todos os dias investia cinco, seis, dez horas neste trabalho que já começara a ser disputado pelas melhores revistas literárias do mundo inteiro. Os móveis, o soalho e os livros do meu quarto compraziam-se vendo-me prosseguir esta obra genial. Mal me sentava, chegavam-se a mim a mesa, a biblioteca e a cama, pipilando de contentes. Sobretudo a biblioteca aproximava-se ao máximo, em pontas, e arqueando as lombadas dos livros, na atitude da grande espectativa. Uma aranha que trabalhava numa grande casa de construção ao canto da parede, deslizava pela polé do seu andaime e acenava-me com as patas.
O meu único inimigo, provocador e brigão, era o vento. Quase todas as noites, antes de entrar no meu quarto, deixava-o a silvar alegremente abraçado a um poste da rua, ou entretido com os papéis que pastavam pela calçada. Mas, mal eu me despia, e a cadeira complacente sacudia o pó e abria os braços para me receber, o vento começava a bater violentamente contra a janela, tentando insinuar-se por alguma fenda, ou abri-la à força; a minha janela, porém, cruzava bem os seus dois rudes e únicos dedos, e mofava do vento. Este, para vingar-se, abanava as paredes com ímpeto selvagem, assobiava estrepitosamente e arrojava punhadas de pó e pedra contra os vidros. Eu, mantinha-me equânime e continuava a trabalhar.
Numa noite, por fim, o vento jurou-me que, se o deixasse entrar e apreciar devidamente a minha obra, nunca mais me aborreceria, antes pelo contrário: trazer-me-ia toda a casta de perfumes e de músicas, e afagaria o meu labor.
Excitado por esta proposta, e, também, forçoso é confessá-lo, pelo legítimo orgulho de ver a minha obra ser alvo de tanto interesse da parte de tão importante personagem, resolvi aceder. O vento, ululando de alegria, deu um giro de 25° e fez repicar todos os sinos da cidade numa corrida triunfal. Não contente com isso, alardeou de nigromante. Três curas deslizavam pela rua: transformou-os em outros tantos guarda-chuvas invertidos. Das ruas e das casas fez Himalaias envoltos nas suas nuvens, e nas mesas dos cafés nasceram rodilhas, títeres e outros objectos da Grande Bijutaria do Lixo.
Abri a janela.
O vento, grotesco, embateu contra as paredes e meteu o nariz por todo o lado. Onde causou verdadeiro terror foi no cesto dos papéis; descansavam tranquilos e, ao darem pela presença do monstro, assustados, endoidecidos, treparam uns por cima dos outros, fizeram remoinho e fugiram em todas as direcções, acoitando-se no balde e debaixo do armário. Ë que o vento é o gato dos papéis.
Francamente: fiquei mosca com tanta informalidade e tão pouco interesse em folhear a minha obra, pelo que o admoestei com severidade. Então, fingindo o maior cuidado, revistou milhares de resmas de papel, fazendo-as estralejar como um baralho de cartas; subitamente, lançou-as no espaço, num ápice, todas de uma só vez, através da janela estupefacta, que abria a boca de assombro, e saiu atrás delas.
Fiquei pasmado, insensível, desencadernado para sempre. Levara a minha obra! A minha mais definitiva obra voava a caminho do horizonte, convertida em gaivota!
Jurei vingar-me sem delongas, e logo atinei como. Quando o vi dormir no telhado com tal estrépito de roncos que as próprias chaminés bocejavam, puz outra janela, que ao mais ligeiro sopro se desengonçava. E ele caiu na rede.
Como habitualmente, assim que acordou lançou-se contra, mas viu-se enleado, derrotado, encarcerado nas frestas.
Há anos que geme amargamente pedindo-me a liberdade. Eu, inflexível, ali o manterei preso aos interstícios da janela, sempre fechada e certa de si mesma. Comigo não se brinca.
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977
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