29 de outubro de 2007

a poesia / al berto




carta da árvore triste


[…]

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido
.
é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

[…]







al berto
o medo
três cartas da memória das índias

(excerto)
assírio & alvim
1997









my trees [01]







gil t sousa
my trees 01
fotografia
2007




22 de outubro de 2007

os livros / jorge luís borges



JORGE LUÍS BORGES, NOVA ANTOLOGIA PESSOAL




A ESCRITA DE DEUS


O cárcere é profundo e de pedra; a sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o chão (que também é de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, facto que agrava de algum modo os sentimentos de opressão e de grandeza. Divide-o um muro interposto. Este, ainda que altíssimo, não atinge a parte superior da abóbada. De um lado estou eu, Tzinacán, mago da pirâmide de Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Rente ao chão, uma longa janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia) abre-se no alto um alçapão e um carcereiro, que os anos vão apagando, maneja uma roldana de ferro e desce-nos, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar.

Perdi a conta dos anos que já estou nas trevas. Eu, que outrora era jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura da minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pederneira abri o peito das vítimas e agora não poderia sem magia, erguer-me do pó.

Na véspera do incêndio da pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos torturaram-me com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, o ídolo do deus, mas este não me abandonou e manteve-me em silêncio no meio dos tormentos. Laceraram-me, feriram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que já não deixarei na minha vida mortal.

Impelido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de algum modo o tempo, quis recordar, na minha sombra, tudo o que sabia. Desperdicei noites inteiras a recordar a ordem e o número de umas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui debelando os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite senti que se aproximava uma lembrança preciosa: antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança: era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica para conjurar esses males. Escreveu de maneira que chegasse às mais afastadas gerações e que não a tocasse o destino. Ninguém sabe em que momento a escreveu nem com que caracteres, porém consta que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que o meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O facto de um cárcere me rodear não me vedava essa esperança, talvez eu já tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e apenas me faltasse entendê-la.

Esta reflexão animou-me e logo me infundiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra há formas antigas, formas incorruptíveis e eternas, qualquer delas poderia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas aplanaram-se e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a configuração dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos perecem. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações dos cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. Talvez no meu rosto estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim da minha busca. Estava nesse afã quando me lembrei que o jaguar era um dos atributos do deus.

Então a minha alma encheu-se de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei o meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se engendrariam interminavelmente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, causando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar e nessa proximidade percebi uma configuração da minha meditação e um secreto favor.

Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada concedia-me um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que manchavam o pelame amarelo. Algumas incluíam pontos, outras formavam riscas transversais na parte inferior das pernas, outras, anulares, repetiam-se. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham margens rubras.

Nada direi dos cansaços do meu trabalho. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava inquietou-me menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que nas linguagens humanas não há ainda proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o engendraram, os cervos que devorou, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda a palavra enunciaria essa infinita concatenação de factos, e não de um modo implícito, mas sim explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfema. Um deus, reflecti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma voz por ele articulada pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa voz, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.

Um dia ou uma noite — entre os meus dias e as minhas noites, que diferença existe? — sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente, e sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir e sonhei que os dois grãos de areia eram três. Foram assim multiplicando-se até encher a cela e eu morria sob esse hemisfério de areia. Compreendi que estava a sonhar e com um grande esforço, despertei. O despertar foi inútil, a inumerável areia sufocava-me. Alguém me disse: Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até ao infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás de percorrer é interminável e morrerás antes de teres despertado realmente.

Senti-me perdido. A areia despedaçava-me a boca, porém gritei: Nem uma areia sonhada me pode matar nem há sonhos que estejam dentro de sonhos. Um resplendor despertou-me. Na treva superior peneirava-se um círculo de luz. Vi o rosto e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

Um homem confunde-se, gradualmente, com a forma do seu destino. Um homem é, por extensão, as suas circunstâncias. Mais do que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote de deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão, como a minha casa. Abençoei a sua humidade, abençoei o seu tigre, abençoei a diminuta entrada de luz, abençoei o meu velho corpo dorido, abençoei a treva e a pedra.

Aconteceu então o que não posso esquecer nem comunicar: a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete os seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante dos meus olhos, nem atrás, nem aos lados, mas em todas as partes, simultaneamente. Essa Roda era feita de água, mas também de fogo, e era (ainda que se visse o limite) infinita. Formavam-na, entrelaçadas, todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era uma das fibras dessa trama total, e Pedro Alvarado, que me torturou, era Outra. Aí estavam as causas e os efeitos, e bastava-me ver essa Roda para entender tudo, infinitamente. Oh ventura de entender, maior que a de imaginar ou que a de sentir! Vi o universo e vi íntimos desígnios do universo. Vi as origens que o Livro do Comum relata. Vi as montanhas que surgiram da água, vi os primeiros homens de cajado, vi as domas que se voltaram contra os homens, vi cães que lhes destroçaram os rostos. Vi o deus sem rosto que há atrás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma única felicidade e, tudo percebendo, logrei também entender a escrita do tigre.

É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e bastaria dizê-las em voz alta para ser todo-poderoso. Bastar-me –ia dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse na minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destroçasse Alvarado, para afundar a sagrada faca em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu Tzinacán, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque já não me lembro de Tzinacán.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo, não pode pensar num homem, nas suas vulgares fortunas ou desditas, ainda que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele Outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não revelo a fórmula, por isso deixo que me esqueçam os dias, deitado na escuridão.

A Ema Risso Platero






jorge luís borges
nova antologia pessoal
trad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983




8 de outubro de 2007

quase requiem






caminhamos na noite
como verbos sujos numa carta de amor

vencidos pelo tempo e pela luz
perdemos as sombras
e temos no rosto
a condenação das estátuas
a mudez dos seus lábios
o desespero fatal dos seus olhos secos
pela eternidade

que negros navios nos carregaram futuros, destinos
e nos largaram nestas ilhas malditas
nestas geografias podres
a que nunca pertenceremos?

que estranho sangue fizemos correr
nas nossas veias já mortas
ruelas de ruínas queimadas
escombros de palácios onde a alma nos morava
donde foi expulsa toda a esperança
e o sonho se esfumou como incenso no deserto

que brilhantes fantasmas nos tornámos
rindo dos espelhos e das águas
onde nos deixaram as raízes
que nos seguravam da loucura

estamos tão sós, tão podres de agonia
e medo!

o corpo lacrado à dor, as rugas escondidas do tempo
o amor apedrejado às coisas e aos outros
como uma moeda atirada da torre de tortura
duma cidade comida pela peste

que fizemos ao tempo de morrer
com uma mão na nossa mão?