31 de janeiro de 2007

a poesia / yorgos seferis







A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.






yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





29 de janeiro de 2007

os livros / clarice lispector




CLARICE LISPECTOR, A PAIXÃO SEGUNDO G. H.




Mas há alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.
— Vou te dizer o que eu nunca te disse antes, talvez seja isso o que está faltando: ter dito. Se eu não disse, não foi por avareza de dizer, nem por minha mudez de barata que tem mais olhos que boca. Se eu não disse é porque não sabia que sabia — mas agora sei. Vou-te dizer que eu te amo. Sei que te disse isso antes, e que também era verdade quando te disse, mas é que só agora estou realmente dizendo. Estou precisando dizer antes que eu... Oh, mas é a barata que vai morrer, não eu! não preciso desta carta de condenado numa cela...
— Não, não quero te dar o susto do meu amor. Se te assustares comigo, eu me assustarei comigo. Não tenhas medo da dor. Tenho agora tanta certeza assim como a certeza de que naquele quarto eu estava viva e a barata estava viva: tenho a certeza disto: de que as coisas todas se passam acima ou abaixo da dor. A dor não é o nome verdadeiro disso que a gente chama de dor. Ouve: estou tendo a certeza disso.
Pois, agora que não estava mais me debatendo, eu sabia quietamente que uma batata era aquela, que dor não era dor.
Ah, tivesse eu sabido do que ia acontecer no quarto, e teria pegado mais cigarros antes de entrar: eu me consumia na vontade de fumar.
—Ah, se eu pudesse te transmitir a lembrança, só agora viva, do que nós dois já vivemos sem saber. Queres te lembrar comigo? oh, sei que é difícil: mas vamos para nós. Em vez de superar-nos. Não tenhas medo agora, estás a salvo porque pelo menos já aconteceu, a menos que vejas perigo cm saber que aconteceu.
É que, quando amávamos, eu não sabia que o amor estava acontecendo muito mais exactamente quando não havia o que chamávamos de amor. O neutro do amor, era isso o que nós vivíamos e desprezávamos.
Estou falando é de quando não acontecia nada, e a esse não acontecer nada chamávamos de intervalo. Mas como era esse intervalo?
Era a enorme flor se abrindo, tudo inchado de si mesmo, minha visão toda grande e trémula. O que eu olhava, logo se coagulava ao meu olhar e se tornava meu — mas não um coágulo permanente se eu o apertasse nas mãos, como a um pedaço de sangue coagulado, a solidificação se liquefazia de novo em sangue por entre os dedos.
E só não era o tempo todo líquido porque, para eu poder colher as coisas com as mãos, as coisas tinham que se coagular como frutas. Nos intervalos que nós chamávamos de vazios e tranquilos, e quando pensávamos que o amor parara...
Lembro-me de minhas dores de garganta de então: as amígdalas inchadas, a coagulação em mim era rápida. E facilmente se liquefazia: minha dor de garganta passou, dizia-te eu. Como geleiras no verão, e liquefeitos os rios correm. Cada palavra nossa — no tempo que chamávamos de vazio — cada palavra era tão leve e vazia como uma borboleta: a palavra de dentro esvoaçava de encontro à boca, as palavras eram ditas mas nem as ouvíamos porque as geleiras liquefeitas faziam muito barulho enquanto corriam. No meio do fragor líquido, nossas bocas se mexiam dizendo, e na verdade só víamos as bocas mexendo-se mas não as ouvíamos — olhávamos um para a boca do outro, vendo-a falar, e pouco importava que não ouvíssemos, oh, em nome de Deus pouco importava.
E em nome nosso, bastava ver que a boca falava, e nós ríamos porque mal prestávamos atenção. E no entanto chamávamos esse não-ouvir de desinteresse e de falta de amor.
Mas na verdade como dizíamos! dizíamos o nada. No entanto tudo tremeluzia como quando lágrimas grossas não se desprendem dos olhos; por isso tudo tremeluzia.
Nesses Intervalos nós pensávamos que estávamos descansando de um ser o outro. Na verdade era o grande prazer de um não ser o outro: pois assim cada um de nós tinha dois. Tudo iria acabar, quando acabasse o que chamávamos de intervalo de amor; e por que ia acabar; pesava trémulo com o próprio peso de seu fim já em si. Lembro-me de tudo isso como através de um tremor de água.
Ah, será que nós originalmente não éramos humanos? e que, por necessidade prática, nos tornamos humanos? isso me horroriza, como a ti. Pois a barata me olhava com sua carapaça de escaravelho, com seu corpo rebentado que é todo feito de canos e de antenas e de mole cimento — e aquilo era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras, aquilo era inegavelmente a vida que até então eu não quisera.
— Então — então pela porta da danação, eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do inferno em mim. Pois em mim mesma eu vi corno é o inferno.






clarice lispector
a paixão segundo g.h.
relógio d’ água
2000



24 de janeiro de 2007

falso lugar #050


edward muybridge





todas as noites não saber

em que hora parar
em que degrau de sombra

largar o recado para o nada

que nos queima
as mãos





7 de janeiro de 2007

a poesia / jean cocteau



Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes.
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para vós é invisível).
Ao crime disfarçado em trajo desumano,
«Mãos ao ar!», gritei eu, «É inútil reagir»;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-me;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.


Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima de cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobem),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu,
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.

«Par lui-même», vv 1-20, Opéra (1927)







vozes da poesia europeia – III
traduções de David Mourão-Ferreira
Colóquio Letras número 165
Setembro - Dezembro 2003



6 de janeiro de 2007

os livros / joan didion


JOAN DIDION, O ANO DO PENSAMENTO MÁGICO


[…]

As pessoas que perderam recentemente alguém têm urna certa expressão que talvez só reconheçam os que já a viram no seu próprio rosto. Reparei nessa expressão no meu rosto e agora reparo nessa expressão no rosto dos outros. É uma expressão de vulnerabilidade extrema, de nudez, de acessibilidade. É a expressão de alguém que sai do consultório do oftalmologista para a luz do dia com os olhos dilatados, ou de alguém que usa óculos e que de repente é obrigado a tirá-los. As pessoas que perderam alguém parecem nuas porque pensam em si mesmas como se fossem invisíveis. Eu própria me senti invisível durante um espaço de tempo, incorpórea. Parecia-me ter atravessado um daqueles rios lendários que separam os vivos dos mortos, que tinha entrado num lugar onde só podia ser vista pelos que também haviam recentemente sofrido urna perda. Compreendi pela primeira vez a força da imagem dos rios, o Estige, o Lete, o barqueiro com o seu manto e a vara. Compreendi pela primeira vez o significado da imolação praticada na Índia. Não é a dor que atira as viúvas para a pira funerária. Pelo contrário, a pira funerária é uma representação exacta do lugar para onde as leva a sua dor (não as famílias, nem a comunidade, nem a tradição — a sua dor). Na noite em que John morreu, faltavam vinte e um dias para o nosso quadragésimo aniversário. Entretanto, já devem ter adivinhado que «a dura e doce sabedoria» dos dois últimos versos de «Rose Aylmer» estava perdida para mim.
Queria mais do que uma noite de recordações e suspiros.
Queria gritar.
Queria que ele voltasse.





o ano do pensamento mágico
trad. eduarda correia
gótica
2006