I
O LIVRO DE UM HOMEM MORTO
Pensamentos em bruto e violentas forças são o meu estado. Não sei quem sou. Nem aquilo que fui. Não ouço um único som. Abeira-se uma dor que há-de ser como nunca houve alguma…
Será este o medo que sustenta o universo? Será a dor o fundamento? Todos os rios veias de dor? Os oceanos, a minha mente inundada? Tenho uma sede como o calor da terra em fogo. Contorcem-se montes. Vejo ondas de chamas. Aluimentos, clarões, ondas de chamas.
A sede está nos rios do corpo. Os rios queimam, mas não se movem. Há carne - será carne? -debaixo de uma qualquer pedra aquecida. Ergue-se lava em campos consumidos pelo fogo.
Onde, em que gruta, se deram tais desmembramentos? Há bocas vulcânicas a despedir fogo, poços a borbulhar. Os ossos assentam como cascalho sobre a ferida.
Ser-se-á humano? Ou estar-se-á apenas vivo? Como uma folha de erva equivalente a toda a existência no momento em que é arrancada? Sim. Se a dor é o fundamento, uma folha de erva pode conhecer tudo quanto existe.
Um número ardente surgiu perante mim. A chama revelou uma orla tão isenta de vacilações como uma faca, e penetrei por esse ígneo sinal adentro. Em fogo comecei a fluir por entre a clara e ardente existência do número 2.
A dor entrou num latejar. Cada repouso entre cada pontada não era bastante ... Ah, o torcer da esperança, o dilacerar da fibra. Os meus órgãos tinham-se certamente distorcido, sim, e o guinchar do osso ao quebrar. Abriam-se portas sobre explosões.
A dor instalou-se na mais cintilante das luzes. Fiquei exposto à rocha ardendo. Demoníaco, o calor do sol e o sangue a ferver nas veias. Não mais voltaria a ser sangue? Foi então que a corrente dos fogos mais altos me deu a conhecer — pela própria intensidade — que não seria destruído. Tinha de haver qualquer existência do outro lado. Por conseguinte, deixei fugir os meus poderes enquanto carbonizavam no coração. Estes poderes moribundos podiam ainda dar vida a outras porções de mim. Porque eu divisava um fio a estremecer na escuridão, uma gavinha viva no carbono enegrecido das minhas carnes, tão fina como o mais delicado nervo, e, ao longo de cada dor, buscava aquele filamento com todo o requinte de angústia, até que a própria dor adquiriu tal esplendor que tive uma revelação. O filamento não era um fio, mas dois, enrolados entre si com imaculada subtileza. Enredavam-se um no outro durante os espasmos mais intoleráveis, e não obstante eram céleres a apartar-se ao primeiro alívio, e com tal tenuidade de movimentos que tive a certeza de presenciar a vida da minha alma (finalmente vista!) a dançar como poalha sobre as chamas.
A seguir tudo se perdeu de novo. As minhas entranhas estremeceram com uma desagregação oceânica, prestes a alijar toda uma multitude de gorduras, doçarias e sucos da velha carne encharcada em prazeres, com o frenesi de um traidor vomitando tudo sob a tortura. Abriria mão do que quer que fosse para cavalgar mais leve a próxima vaga de repulsa e, na escuridão de vagas de carne fustigando águas naturais de som, forcejava.
Não podia sepultar-me em tais enxofres. Não eram as emanações, mas sim o terror de sufocar; não era a morte pelo fogo, mas sim o solo a sepultar-me. Era a argila! Sobreveio uma visão da argila a vedar as narinas e a boca e os ouvidos, infiltrando-se nas órbitas ... Tinha perdido totalmente a visão do filamento duplo. Havia apenas eu próprio naquelas grutas sepultas e o martelar do meu intestino. Contudo, se eu estivesse destinado a ser soterrado no negrume daqueles gritantes e ferventes objectos, tinha logrado uma visão com que me atormentar. Porque me compenetrara da beleza da minha alma no preciso momento em que não podia alcançar o seu uso. Pereceria com tais ideias ao mesmo tempo que as obtivera?
Chegou então um momento de paz nesta tempestade e tumulto das vias respiratórias. Conheci a desolação solene do aplacado centro do furacão, e nessa calmaria vi com pesar que podia agora ser sábio sem vida na qual aplicar a minha sabedoria. Porque tinha uma perspectiva de antigos diálogos. Outrora tinha vivido como amo e escravo ... e agora um e outro estavam perdidos para toda e qualquer nova captura ... Ah, o diálogo perdido que nunca se tinha dado entre a minha parte melhor e a restante. O cobarde é que fora o amo. Houve então algo que abriu alas nas longas galerias do meu orgulho e obtive uma visão do fundamento da dor, uma visão tão bela quanto estreita. Mas agora os moinhos da injúria giravam de novo. Como uma serpente cujas entranhas se desintegraram, desisti, implorei paz e dei origem à minha sangrenta e coagulante história de convoluto e tortuoso estripado. Houve uma qualquer totalidade de mim que se me esvaiu do ventre, e vi a figura ardente do 2 dissolver-se em chamas. Não mais seria aquilo que fora. A minha alma estava dolorida, humilhada e enfurecida por essa privação, e contudo arrogante como a própria beleza. Porque a dor cessara e eu era novo. Possuía uma vez mais um corpo.
noites antigas
trad. teixeira de aguilar
publicações europa- américa
1983
27 de maio de 2006
os livros / norman mailer
NORMAN MAILER, NOITES ANTIGAS
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1 comentário:
A tradução de ANCIENT EVENINGS de Norman Mailer foi feita pela tradutora Aulyde Soares Rodrigues em 1983 para a Editora Nova Fronteira S/A - Rio de Janeiro = NOITES ANTIGAS - CIP-Brasil. Catalogação na fonte - Sindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ - M19n - 83-0366 - CDD - 813 - CDU - 820(73) - 31
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