Lisbeth Zwerger
febre
eles deixaram-me
porque lhes pedi a febre
não há mundo
no que não se incendeia
escuta:
sou uma vela branca
a murmurar a sua chama
apaga-me
se quiseres ir
I
O LIVRO DE UM HOMEM MORTO
Pensamentos em bruto e violentas forças são o meu estado. Não sei quem sou. Nem aquilo que fui. Não ouço um único som. Abeira-se uma dor que há-de ser como nunca houve alguma…
Será este o medo que sustenta o universo? Será a dor o fundamento? Todos os rios veias de dor? Os oceanos, a minha mente inundada? Tenho uma sede como o calor da terra em fogo. Contorcem-se montes. Vejo ondas de chamas. Aluimentos, clarões, ondas de chamas.
A sede está nos rios do corpo. Os rios queimam, mas não se movem. Há carne - será carne? -debaixo de uma qualquer pedra aquecida. Ergue-se lava em campos consumidos pelo fogo.
Onde, em que gruta, se deram tais desmembramentos? Há bocas vulcânicas a despedir fogo, poços a borbulhar. Os ossos assentam como cascalho sobre a ferida.
Ser-se-á humano? Ou estar-se-á apenas vivo? Como uma folha de erva equivalente a toda a existência no momento em que é arrancada? Sim. Se a dor é o fundamento, uma folha de erva pode conhecer tudo quanto existe.
Um número ardente surgiu perante mim. A chama revelou uma orla tão isenta de vacilações como uma faca, e penetrei por esse ígneo sinal adentro. Em fogo comecei a fluir por entre a clara e ardente existência do número 2.
A dor entrou num latejar. Cada repouso entre cada pontada não era bastante ... Ah, o torcer da esperança, o dilacerar da fibra. Os meus órgãos tinham-se certamente distorcido, sim, e o guinchar do osso ao quebrar. Abriam-se portas sobre explosões.
A dor instalou-se na mais cintilante das luzes. Fiquei exposto à rocha ardendo. Demoníaco, o calor do sol e o sangue a ferver nas veias. Não mais voltaria a ser sangue? Foi então que a corrente dos fogos mais altos me deu a conhecer — pela própria intensidade — que não seria destruído. Tinha de haver qualquer existência do outro lado. Por conseguinte, deixei fugir os meus poderes enquanto carbonizavam no coração. Estes poderes moribundos podiam ainda dar vida a outras porções de mim. Porque eu divisava um fio a estremecer na escuridão, uma gavinha viva no carbono enegrecido das minhas carnes, tão fina como o mais delicado nervo, e, ao longo de cada dor, buscava aquele filamento com todo o requinte de angústia, até que a própria dor adquiriu tal esplendor que tive uma revelação. O filamento não era um fio, mas dois, enrolados entre si com imaculada subtileza. Enredavam-se um no outro durante os espasmos mais intoleráveis, e não obstante eram céleres a apartar-se ao primeiro alívio, e com tal tenuidade de movimentos que tive a certeza de presenciar a vida da minha alma (finalmente vista!) a dançar como poalha sobre as chamas.
A seguir tudo se perdeu de novo. As minhas entranhas estremeceram com uma desagregação oceânica, prestes a alijar toda uma multitude de gorduras, doçarias e sucos da velha carne encharcada em prazeres, com o frenesi de um traidor vomitando tudo sob a tortura. Abriria mão do que quer que fosse para cavalgar mais leve a próxima vaga de repulsa e, na escuridão de vagas de carne fustigando águas naturais de som, forcejava.
Não podia sepultar-me em tais enxofres. Não eram as emanações, mas sim o terror de sufocar; não era a morte pelo fogo, mas sim o solo a sepultar-me. Era a argila! Sobreveio uma visão da argila a vedar as narinas e a boca e os ouvidos, infiltrando-se nas órbitas ... Tinha perdido totalmente a visão do filamento duplo. Havia apenas eu próprio naquelas grutas sepultas e o martelar do meu intestino. Contudo, se eu estivesse destinado a ser soterrado no negrume daqueles gritantes e ferventes objectos, tinha logrado uma visão com que me atormentar. Porque me compenetrara da beleza da minha alma no preciso momento em que não podia alcançar o seu uso. Pereceria com tais ideias ao mesmo tempo que as obtivera?
Chegou então um momento de paz nesta tempestade e tumulto das vias respiratórias. Conheci a desolação solene do aplacado centro do furacão, e nessa calmaria vi com pesar que podia agora ser sábio sem vida na qual aplicar a minha sabedoria. Porque tinha uma perspectiva de antigos diálogos. Outrora tinha vivido como amo e escravo ... e agora um e outro estavam perdidos para toda e qualquer nova captura ... Ah, o diálogo perdido que nunca se tinha dado entre a minha parte melhor e a restante. O cobarde é que fora o amo. Houve então algo que abriu alas nas longas galerias do meu orgulho e obtive uma visão do fundamento da dor, uma visão tão bela quanto estreita. Mas agora os moinhos da injúria giravam de novo. Como uma serpente cujas entranhas se desintegraram, desisti, implorei paz e dei origem à minha sangrenta e coagulante história de convoluto e tortuoso estripado. Houve uma qualquer totalidade de mim que se me esvaiu do ventre, e vi a figura ardente do 2 dissolver-se em chamas. Não mais seria aquilo que fora. A minha alma estava dolorida, humilhada e enfurecida por essa privação, e contudo arrogante como a própria beleza. Porque a dor cessara e eu era novo. Possuía uma vez mais um corpo.
noites antigas
trad. teixeira de aguilar
publicações europa- américa
1983
eu queria uma grande manhã, uma lúcida manhã sem cinzas, luminosa, quase quente, donde fosse possível avistar as brancas montanhas do tempo, donde fosse possível olhar o princípio de todos os caminhos e esperar.
e que não fosse tarde, que nunca fosse tarde nos seres amados, nem nos lugares por onde passámos e, nus, deixámos os olhos como uma nuvem sobre a morte.
dentro do tempo, o tempo
o cheiro do mundo
quando me cantas essa rua antiga
já por aqui morri
e vivo
regresso ao beijo seguro
e fiel
a memória de ti - não a tua imagem.
*
depois chorar.
henry deluy
de “Primeiras Sequências”
poetas em mateus
quetzal
2002
“na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todas as jarras
no meu peito
fora, dentro
no tinteiro na dificuldade de escrever na maravilha dos meus olhos, nas últimas luas do sol (mas o sol não tem luas) em tudo e dizer em tudo é estúpido e magnífico DIEGO na minha urina DIEGO na minha boca no meu coração na minha loucura no meu sonho no mata-borrão na ponta da caneta nos lápis nas paisagens na alimentação no metal na imaginação nas doenças nas montras nas suas astúcias nos seus olhos na sua boca nas suas mentiras. “
frida kahlo
(diego & frida
j.m.g. le clézio
trad. manuel Alberto
relógio d´água
1994)
SIDE OF THE ROAD
Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos
minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender
as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores
tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005
tarde antiga
oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas
o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda
as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante
que durante tanto tempo
me encheram os olhos
numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras
escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal
Este erotismo tão exclusivista cansa um pouco o leitor que não possua uma disposição tão continuada para o delíquio apaixonado. Ao percorrer estas páginas, pensamos mais de uma vez que se trata de uma curiosa ilusão de óptica padecida por este poeta. Não é que o amor seja, em verdade, tudo, mas a eloquência poética só brota em Anna de Noailles de estados de espírito voluptuosos.
Plus je vis, oh mon Dieu, moins je peux exprimer
La force de mon coeur; l´infinité d´aimer,
Ce languissant ou bien ce bondissant orage.
Je suis comme l‘étable où entrent les rois mages
Tenant entre leurs mains leurs cadeaux parfumés.
Je suis cette humble porte ouverte sur le monde;
La nuit, l´air, les parfums et l´étoile m´inondent.
Esta perpétua cantilena voluptuosa flui como um rio denso pelo leito do verso. Não é, pois, propriamente amor; é simplesmente voluptuosidade. As suas metáforas são quase sempre do mesmo tipo; em quase todas se alude ao estremecimento erótico e repercute o espasmo. A alma que nesta poesia se expressa não é espiritual; é, pelo contrário, a alma de um corpo que se diria vegetal.
Se tentarmos imaginar a alma de uma planta, não lhe poderemos atribuir ideias nem sentimentos: não haverá nela mais do que sensações, e mesmo estas, vagas, difusas, atmosféricas. A planta sentir-se-á bem sob um céu benigno, sob a mão branda de um vento suave; sentir-se-á mal debaixo de um temporal, açoitada pela neve inverniça. A voluptuosidade feminina é, talvez, de todas as impressões humanas, a que nos parece mais próxima da existência botânica.
Anna de Noailles sente o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim. Daí a sua prodigiosa sensibilidade para as mudanças atmosféricas, climas, estações. Não obstante a sua insistência amorosa, é revelador que o homem não apareça nunca desenhado no fundo aéreo desta poesia. Em contrapartida, intervêm os seres anónimos e difusos: o vento, a humanidade, o azul, o silêncio.
Le flot léger de l´air vient par ondes dansantes...
Não caberá esta ideia perfeitamente no coração de uma papoila?
(…)
Ortega y Gasset
Estudos Sobre o Amor
Relógio d´Água
2002
Quinta de Santa Catarina
3.
pouco mais há a dizer, caminho largando os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros lugares já estivera triste, por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. nem mesmo a vida, nenhuma morte, na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever, estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim
1997
Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.
Le poème continu
somme anthologique
Institut Camões / Chandeigne
Paris, 2002