27 de abril de 2006

a poesia / luís buñel



Uma traição inqualificável


Há já um ano que eu trabalhava na minha obra, na minha grande obra. Todos os dias investia cinco, seis, dez horas neste trabalho que já começara a ser disputado pelas melhores revistas literárias do mundo inteiro. Os móveis, o soalho e os livros do meu quarto compraziam-se vendo-me prosseguir esta obra genial. Mal me sentava, chegavam-se a mim a mesa, a biblioteca e a cama, pipilando de contentes. Sobretudo a biblioteca aproximava-se ao máximo, em pontas, e arqueando as lombadas dos livros, na atitude da grande espectativa. Uma aranha que trabalhava numa grande casa de construção ao canto da parede, deslizava pela polé do seu andaime e acenava-me com as patas.

O meu único inimigo, provocador e brigão, era o vento. Quase todas as noites, antes de entrar no meu quarto, deixava-o a silvar alegremente abraçado a um poste da rua, ou entretido com os papéis que pastavam pela calçada. Mas, mal eu me despia, e a cadeira complacente sacudia o pó e abria os braços para me receber, o vento começava a bater violentamente contra a janela, tentando insinuar-se por alguma fenda, ou abri-la à força; a minha janela, porém, cruzava bem os seus dois rudes e únicos dedos, e mofava do vento. Este, para vingar-se, abanava as paredes com ímpeto selvagem, assobiava estrepitosamente e arrojava punhadas de pó e pedra contra os vidros. Eu, mantinha-me equânime e continuava a trabalhar.

Numa noite, por fim, o vento jurou-me que, se o deixasse entrar e apreciar devidamente a minha obra, nunca mais me aborreceria, antes pelo contrário: trazer-me-ia toda a casta de perfumes e de músicas, e afagaria o meu labor.

Excitado por esta proposta, e, também, forçoso é confessá-lo, pelo legítimo orgulho de ver a minha obra ser alvo de tanto interesse da parte de tão importante personagem, resolvi aceder. O vento, ululando de alegria, deu um giro de 25° e fez repicar todos os sinos da cidade numa corrida triunfal. Não contente com isso, alardeou de nigromante. Três curas deslizavam pela rua: transformou-os em outros tantos guarda-chuvas invertidos. Das ruas e das casas fez Himalaias envoltos nas suas nuvens, e nas mesas dos cafés nasceram rodilhas, títeres e outros objectos da Grande Bijutaria do Lixo.

Abri a janela.

O vento, grotesco, embateu contra as paredes e meteu o nariz por todo o lado. Onde causou verdadeiro terror foi no cesto dos papéis; descansavam tranquilos e, ao darem pela presença do monstro, assustados, endoidecidos, treparam uns por cima dos outros, fizeram remoinho e fugiram em todas as direcções, acoitando-se no balde e debaixo do armário. Ë que o vento é o gato dos papéis.

Francamente: fiquei mosca com tanta informalidade e tão pouco interesse em folhear a minha obra, pelo que o admoestei com severidade. Então, fingindo o maior cuidado, revistou milhares de resmas de papel, fazendo-as estralejar como um baralho de cartas; subitamente, lançou-as no espaço, num ápice, todas de uma só vez, através da janela estupefacta, que abria a boca de assombro, e saiu atrás delas.

Fiquei pasmado, insensível, desencadernado para sempre. Levara a minha obra! A minha mais definitiva obra voava a caminho do horizonte, convertida em gaivota!

Jurei vingar-me sem delongas, e logo atinei como. Quando o vi dormir no telhado com tal estrépito de roncos que as próprias chaminés bocejavam, puz outra janela, que ao mais ligeiro sopro se desengonçava. E ele caiu na rede.

Como habitualmente, assim que acordou lançou-se contra, mas viu-se enleado, derrotado, encarcerado nas frestas.

Há anos que geme amargamente pedindo-me a liberdade. Eu, inflexível, ali o manterei preso aos interstícios da janela, sempre fechada e certa de si mesma. Comigo não se brinca.





luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977



26 de abril de 2006

falso lugar #028

das viagens


regresso ao livro
que me declara sábio

que não me abandonem
os ventos
quando de novo navegar
o marítimo corpo
da ausência


é que me abro
à oração dos desertos
e sigo a minúcia dos milagres
até ao deslumbre
do que morre


(que torre é esta
que se atravessa na madrugada
e me serve o oculto canto
da paisagem que te esconde?)



22 de abril de 2006

os livros / samuel beckett



SAMUEL BECKETT, NOVELAS E TEXTOS PARA NADA



O calmante

Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.
(…)




novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006


21 de abril de 2006

falso lugar #027


era um passo novo
um timbre de rua nova
numa cidade calada

a tua mão na água dormente
a dança do teu olhar
sobre o peso

do tempo sábio
segui-te o sonho
como uma ave

e regressei
ainda mais só



18 de abril de 2006

falso lugar #026



eu queria uma grande manhã, uma lúcida manhã sem cinzas, luminosa, quase quente, donde fosse possível avistar as brancas montanhas do tempo, donde fosse possível olhar o princípio de todos os caminhos e esperar.

e que não fosse tarde, que nunca fosse tarde nos seres amados, nem nos lugares por onde passámos e, nus, deixámos os olhos como uma nuvem sobre a morte.

12 de abril de 2006

a poesia / antónio josé forte



MEMÓRIA


À flor da terra a flor de fumo
dos meus cigarros adolescentes
fumados amorosamente entre fantasmas

desse tempo
os meus pulmões que dançam
os meus olhos de desobediência civil
fascinados
que saúdam o arco histérico do desejo

o meu nome que flutua
na orla do furor

desse tempo
uma paisagem de nuvens inventadas
para as minhas aves altíssimas
suspensas sobre a morte

chuva do princípio do mundo
escrita na minha pele
com a língua das tempestades
todas as ruas secretas
por onde não passa
o manequim de patas de alcatrão
devorador do ar

eu beijei o crânio azul da noite
ajoelhado numa bandeira ardente
entre a bela e o monstro
dormi entre frases imensas e bárbaras
e puríssimas
pronunciadas pelo mistério

desse tempo
uma onda de silêncio deslumbrante
onde voam flores negras
quando anoitece do lado do amor
e um homem com passos escarlates
que atravessa o nevoeiro

agora a sombra no meu peito
de um avião que passa
à velocidade da erupção dos teus cabelos
quando amanhece neles

como uma coroa de versos
na estátua jazente do único
a cabeça voltada para o lado intelectual da morte
os olhos muito abertos para o pranto de súbito
todos os nus uma criança incluída
presos por um fio de sangue
definitivamente ás estrelas
e a minha assinatura do fígado sobre as águas
em vez do meu nome leiam
Mil Crimes de Amor numa torre de marfim

eu sei
uma pequena multidão petrificada
ameaça escurecer os rostos os mais belos
é ela que avança contra os relógios de sol

eclipse total se não há
espelhos para as insónias negras
se não há para a biografia completa do homem
um grande amor da cama à música das esferas
passando por um tremor de terra





uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
lisboa 2003

9 de abril de 2006

falso lugar #025



é Verão no meu sangue e o corpo é o quadrante dum relógio mágico onde todas as horas são marcadas com sinais de fogo.

nas veias queimadas, só o carinho da Lua – essa velha surda e cega ! – que na sua bondade de fêmea me transforma os pecados em paixão e faz dos meus gritos orações poderosas que os deuses escutam e aceitam.


5 de abril de 2006

falso lugar #024


dentro do tempo, o tempo

o cheiro do mundo
quando me cantas essa rua antiga

já por aqui morri
e vivo
regresso ao beijo seguro
e fiel



4 de abril de 2006

falso lugar #023

a casa



e a casa fecha-se
como uma flor que se gasta


agora
as palavras sobem-na
como raízes
devoradoras
sobre os olhos
entaipados


há esse amor
um vermelho muito alto
tão alto
e a morrer, a morrer
como sangue ao relento
ou livros abandonados
no chão da memória


no desejo

e há um adeus muito triste
um céu antigo
que tudo cobre sem gritar


ternura
é a ternura meu amor
é esta fogueira medonha que se apaga
no coração silencioso
do tempo frio


a casa, amor
o punho fechado do destino
roendo
o que os olhos largaram na rua
o que as mãos pousaram
no coração
para sempre, para sempre, para sempre


1 de abril de 2006

os livros / roland barthes



ROLAND BARTHES, INCIDENTES



Hoje, 17 de Julho, está um tempo esplêndido. Sentado no banco, pisco os olhos, por brincadeira, como fazem as crianças, e vejo uma margarida do jardim, com todas as proporções alteradas, estender-se sobre a planície em frente, do outro lado da rua.
A rua corre como uma ribeira tranquila; atravessada de quando em quando por uma motocicleta ou um tractor (são estes, hoje em dia, os verdadeiros sons do campo, não menos poéticos, afinal, que o cantar dos pássaros: sendo raros, fazem sobressair o silêncio da natureza e imprimem-lhe a marca discreta de uma actividade humana), a rua lá vai irrigar uma zona mais afastada da aldeia. Já que esta aldeia, apesar de modesta, tem as suas zonas periféricas. Não será sempre a aldeia, em França, um espaço contraditório? Restrita, centrada, ela não deixa de se prolongar até bastante longe; a minha, muito clássica, tem apenas um largo, uma igreja, uma padaria, uma farmácia e duas mercearias (hoje em dia, devia dizer dois self-services); mas tem também, por uma espécie de capricho que perturba as leis aparentes da geografia humana, dois cabeleireiros e dois médicos. França, país de medida? Digamos antes — e isto a todos os níveis da vida nacional: país das proporções complexas.
Do mesmo modo, o meu Sudoeste é extensível, como aquelas imagens que mudam de sentido consoante o nível da percepção em que decido captá-las. Conheço assim, subjectivamente, três Sudoestes.
O primeiro, muito vasto (uma quarta parte da França), é-me designado instintivamente por um sentimento tenaz de solidariedade (pois estou longe de o ter visitado na sua totalidade): qualquer notícia que me chegue desse espaço toca-me de uma forma pessoal. Ao pensar nisto, parece-me que a unidade desse grande Sudoeste é para mim a língua: não o dialecto (pois não conheço nenhuma langue d’oc); mas o sotaque, porque não há dúvida que o sotaque do Sudoeste formou os modelos de entoação que marcaram a minha primeira infância. Este sotaque gascão distingue-se para mim do outro sotaque meridional, o do Sul mediterrânico; este tem, na França de hoje, algo de triunfante: sustentado por todo um folclore cinematográfico (Raimu, Fernandel), publicitário (azeites, limões) e turístico; o sotaque do Sudoeste (talvez mais pesado, menos cantante) não tem esses títulos de modernidade; para se ilustrar tem apenas as entrevistas dos jogadores de rugby. Eu próprio não tenho sotaque; no entanto, ficou-me da infância um «meridionalismo»: digo «socializmo» e não «socialismo» (quem sabe se assim não serão dois socialismos?).
O meu segundo Sudoeste não é uma região; é apenas uma linha, um trajecto vivido. Quando, vindo de Paris de automóvel (uma viagem que fiz mil vezes), passo Angoulême, um sinal avisa-me que passei o limiar da casa e que entro no país da minha infância; um pequeno bosque de pinheiros de um dos lados, uma palmeira no pátio de uma casa, uma determinada altura das nuvens que dá ao terreno a mobilidade de um rosto. Então começa a grande luz do Sudoeste, nobre e subtil ao mesmo tempo; nunca é cinzenta, nunca é baixa (mesmo quando o sol não brilha), é uma luz-espaço, definida menos pelas cores com as quais afecta as coisas (como no outro Sul) do que pela qualidade eminentemente habitável que dá à terra. Não encontro outra forma de o dizer; é uma luz luminosa. É preciso vê-la, a essa luz (eu diria quase ouvi-la, de tal modo é musical), no Outono, que é a estação soberana deste país; líquida, brilhante, dilacerante porque é a última luz bela do ano, iluminando cada coisa na sua diferença (o Sudoeste é um país de micro-climas), preserva este país de toda a vulgaridade, de toda a gregaridade, torna-o impróprio para turismo fácil e revela a sua aristocracia (não é uma questão de classe, mas de carácter). Dizendo isto de uma maneira tão elogiosa, sinto um certo escrúpulo: não haverá nunca momentos ingratos, neste clima do Sudoeste? Há certamente, mas, para mim, não são os momentos de chuva ou de tempestade (frequentes, no entanto); não são apenas os momentos em que o céu está cinzento; os acidentes da luz, aqui, parece-me, não provocam qualquer «spleen»; não afectam a alma, mas apenas o corpo, por vezes viscoso de humidade, embriagado de clorofila, ou fatigado, extenuado pelo vento de Espanha que torna os Pirinéus muito próximos de um tom violeta: sentimento ambíguo, em que o cansaço acaba por ter algo de delicioso, como acontece sempre que é o meu corpo (e não o meu olhar) a perturbar-se.
O meu terceiro Sudoeste é ainda mais reduzido: é a cidade onde passei a minha infância, e depois as minhas férias de adolescente (Bayonne), é a aldeia onde volto todos os anos, é o trajecto que liga uma à outra e que eu percorri tantas vezes, para ir à cidade comprar charutos ou artigos de papelaria, ou à estação buscar um amigo. Posso escolher entre várias estradas; uma, mais longa, passa pelo interior das terras, atravessa uma paisagem em que se misturam o Béarn e o país Basco; outra, uma deliciosa estrada de campo, segue o cume das encostas que dominam o Adour; do outro lado do rio, vejo uma fileira contínua de árvores, escuras por estarem longe: são os pinheiros das Landes; uma terceira estrada, muito recente (data deste ano), corre ao longo do Adour, na sua margem esquerda: não tem qualquer interesse, a não ser o da rapidez do trajecto e, por vezes, de fugida, o rio, muito largo, muito suave, ponteado pelas pequenas velas brancas de um clube náutico. Mas a estrada que eu prefiro e que de vez em quando escolho seguir por prazer, é a que acompanha a margem direita do Adour; antigamente, servia para rebocar barcos, e vêem-se algumas quintas e casas bonitas. Certamente gosto dela por ter, pela sua natureza, essa dosagem de nobreza e familiaridade que é própria do Sudoeste; poder-se-ia dizer que, ao contrário da sua rival da outra margem, é ainda uma verdadeira estrada, não uma via funcional de comunicação, mas como uma experiência complexa, onde têm simultaneamente lugar um espectáculo contínuo (o Adour é um belo rio desconhecido) e a memória de uma prática ancestral, a de andar, a penetração lenta e como que ritmada da paisagem, que imediatamente adquire outras proporções; retoma-se neste ponto o que ficou dito no princípio, e que é no fundo o poder que tem este país de frustrar a imobilidade e a rigidez dos postais; não vale a pena fotografar; para avaliar, para amar, é preciso vir e ficar, de modo a poder percorrer todas as variações dos lugares, das estações, dos climas, das luzes.
Dir-me-ão: limita-se a falar do tempo, de impressões vagamente estéticas, em todo o caso puramente subjectivas. Mas os homens, as relações, as indústrias, os comércios, os problemas? Mesmo como simples residente, não se apercebe de nada disso? — Entro nestas regiões da realidade à minha maneira, quer dizer, com o meu corpo; e o meu corpo é a minha infância, exactamente como a fez a história. Essa história proporcionou-me uma juventude provincial, meridional, burguesa. Para mim, estas três componentes são indistintas; a burguesia é para mim a província, e a província é Bayonne; o campo (da minha infância), é sempre o interior de Bayonne, rede de excursões, de visitas e de histórias. Por isso, na idade em que a memória se forma, das «grandes realidades» só aproveitei a sensação que me provocavam: alpercheiros, cansaços, sons de vozes, passeios, luzes, tudo aquilo que, do real, é de certo modo irresponsável e não tem mais nenhum sentido a não ser o de mais tarde formar a recordação do tempo perdido (completamente diferente foi a minha infância parisiense: cheia de dificuldades materiais teve, se assim se pode dizer, a abstracção severa da pobreza, e não tenho quaisquer «impressões» do Paris dessa época). Se falo deste Sudoeste exactamente como a sua recordação é refractada em mim, é por acreditar na fórmula de Joubert: «Não devemos exprimir-nos como sentimos, mas como recordamos».
Estas insignificâncias são, portanto, como as portas de entrada dessa vasta região de que se ocupam o saber sociológico e a análise política. Nada, por exemplo, tem mais importância nas minhas recordações do que os cheiros desse bairro antigo, entre Nive e Adour, a que se chama o Petit-Bayonne: todos os objectos do pequeno comércio ali se misturam, compondo uma fragância inimitável; a corda das sandálias (aqui, não se diz «alpergatas»), trabalhada por velhos Bascos, o chocolate, o azeite espanhol, o ar confinado das lojas obscuras e das ruas estreitas, o papel envelhecido dos livros da biblioteca municipal, tudo isso funcionava como a fórmula química de um comércio desaparecido (ainda que este bairro conserve um pouco desse encanto antigo), ou, mais exactamente, funciona hoje como a fórmula dessa desaparição. Através do cheiro, é a própria mudança de um tipo de consumo que eu apreendo: as sandálias (de sola tristemente forrada a borracha) já não são artesanais, o chocolate e o azeite compram-se fora da cidade, num supermercado. Acabaram os cheiros, como se, paradoxalmente, os progressos da poluição urbana expulsassem os perfumes domésticos, como se a «pureza» fosse uma forma pérfida da poluição.
Outra introdução: conheci, na minha infância, muitas famílias da burguesia de Bayonne (Bayonne, nessa época, tinha algo de balzaquiano); conheci os seus hábitos, os seus ritos, as suas conversas, o seu modo de vida. Essa burguesia liberal era cheia de preconceitos, e não de capital; havia uma espécie de distorção entre a ideologia dessa classe (francamente reaccionária) e o seu estatuto económico (por vezes trágico). Esta distorção, nunca a reteve a análise sociológica ou política, que funciona como um passador largo e deixa fugir as «subtilezas» da dialéctica social. Ora essas subtilezas — ou esses paradoxos da História — mesmo não sabendo formulá-los, sentia-os: já «lia» o Sudoeste, percorria o texto que vai da luz de uma paisagem, do peso de um dia enlanguescido sob o vento de Espanha, a todo o tipo de discurso, social e provincial. Porque «ler» um país é antes de mais nada descobri-lo através do corpo e da memória, segundo a memória do corpo. Penso que é a esse vestíbulo do saber e da análise que está destinado o escritor: mais consciente dos próprios interstícios da competência. É por isso que a infância é a via real para através dela conhecermos um país da melhor maneira. No fundo, só há País se for o da infância.

1977, L’Humanité



incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987


falso lugar #022



grandes navios no horizonte
e
nenhum mar por perto!