31 de maio de 2007
a poesia / maria do rosário pedreira
Chegam cedo de mais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez
quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.
Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão
culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde – uma ou duas palavras para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.
maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002
30 de maio de 2007
26 de maio de 2007
os livros / fernando pessoa
FERNANDO PESSOA, LIVRO DO DESASSOSSEGO
A morte do Príncipe

Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e rios ao longe, e montanhas… Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou de ficar, e de onde estar e de o que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra coisa que estou a ver se vejo.
Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora em que estou entre o que não fui e o que não serei?
fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares vol. II
recolha e transcrição dos textos:
maria aliete galhoz e teresa sobral cunha
ática
1982
24 de maio de 2007
19 de maio de 2007
os livros / italo calvino
ITALO CALVINO, AS CIDADES INVISíVEIS
As cidades ocultas. 2.
Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».
italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999
14 de maio de 2007
manifesto
todo o olhar será resoluto
e cercará liquidamente todas as formas
todos as coisas
todas os seres
não parará de se cumprir
até ao ínfimo estremecer da cor mais rara
e ignorará sempre
a lei do espaço e do tempo
arrasará de irreal
a superfície dos volumes mais intensos
todas as arestas do mundo
serão extintas
e há-de nascer
uma nova geometria
10 de maio de 2007
nenhuma escada
todos os relógios
estavam do teu lado
eu só tinha a minha torre
de espelhos
só tinha a noite
e o silêncio
e nenhuma escada
7 de maio de 2007
a poesia / özdemir ince
o preço
Atravesso, majestosamente, o verão em voo planado,
as crianças olham para as minhas asas
e sentem inveja,
elas não podem adivinhar
o preço deste aniquilamento.
Quantos invernos, massacres, misérias
conheci!
Quantas vezes a minha fronte derreteu ao tocar
a terra!
Às portas das cidades, quantas vezes me deixaram
sozinho, em frente a um espelho!
özdemir ince
poemas
tradução de egito gonçalves
5 de maio de 2007
equador
mais tarde
sentiria a dor da terra seca
havia de ouvir o cinzel do tempo
e experimentar o arrepio
da fusão lenta dos espelhos
que estranho fogo nos queima
quando da solidão suprema
se ergue o chão de todas as coisas
e exangues de saudade e medo
aí deixamos o amor
todo o amor
com a violenta ternura
do que é eterno
quanto mais se pode dar
a quem um dia nos cruzou o coração
como um equador
de vida e paixão?
1 de maio de 2007
a poesia / ana paula inácio
queria que me acompanhasses
queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos
ana paula inácio
poetas sem qualidades
averno
2002
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