sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome
a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?
a memória de ti - não a tua imagem.
*
depois chorar.
henry deluy
de “Primeiras Sequências”
poetas em mateus
quetzal
2002
“na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todas as jarras
no meu peito
fora, dentro
no tinteiro na dificuldade de escrever na maravilha dos meus olhos, nas últimas luas do sol (mas o sol não tem luas) em tudo e dizer em tudo é estúpido e magnífico DIEGO na minha urina DIEGO na minha boca no meu coração na minha loucura no meu sonho no mata-borrão na ponta da caneta nos lápis nas paisagens na alimentação no metal na imaginação nas doenças nas montras nas suas astúcias nos seus olhos na sua boca nas suas mentiras. “
frida kahlo
(diego & frida
j.m.g. le clézio
trad. manuel Alberto
relógio d´água
1994)
SIDE OF THE ROAD
Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos
minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender
as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores
tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005
tarde antiga
oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas
o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda
as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante
que durante tanto tempo
me encheram os olhos
numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras
escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal
Este erotismo tão exclusivista cansa um pouco o leitor que não possua uma disposição tão continuada para o delíquio apaixonado. Ao percorrer estas páginas, pensamos mais de uma vez que se trata de uma curiosa ilusão de óptica padecida por este poeta. Não é que o amor seja, em verdade, tudo, mas a eloquência poética só brota em Anna de Noailles de estados de espírito voluptuosos.
Plus je vis, oh mon Dieu, moins je peux exprimer
La force de mon coeur; l´infinité d´aimer,
Ce languissant ou bien ce bondissant orage.
Je suis comme l‘étable où entrent les rois mages
Tenant entre leurs mains leurs cadeaux parfumés.
Je suis cette humble porte ouverte sur le monde;
La nuit, l´air, les parfums et l´étoile m´inondent.
Esta perpétua cantilena voluptuosa flui como um rio denso pelo leito do verso. Não é, pois, propriamente amor; é simplesmente voluptuosidade. As suas metáforas são quase sempre do mesmo tipo; em quase todas se alude ao estremecimento erótico e repercute o espasmo. A alma que nesta poesia se expressa não é espiritual; é, pelo contrário, a alma de um corpo que se diria vegetal.
Se tentarmos imaginar a alma de uma planta, não lhe poderemos atribuir ideias nem sentimentos: não haverá nela mais do que sensações, e mesmo estas, vagas, difusas, atmosféricas. A planta sentir-se-á bem sob um céu benigno, sob a mão branda de um vento suave; sentir-se-á mal debaixo de um temporal, açoitada pela neve inverniça. A voluptuosidade feminina é, talvez, de todas as impressões humanas, a que nos parece mais próxima da existência botânica.
Anna de Noailles sente o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim. Daí a sua prodigiosa sensibilidade para as mudanças atmosféricas, climas, estações. Não obstante a sua insistência amorosa, é revelador que o homem não apareça nunca desenhado no fundo aéreo desta poesia. Em contrapartida, intervêm os seres anónimos e difusos: o vento, a humanidade, o azul, o silêncio.
Le flot léger de l´air vient par ondes dansantes...
Não caberá esta ideia perfeitamente no coração de uma papoila?
(…)
Ortega y Gasset
Estudos Sobre o Amor
Relógio d´Água
2002
Quinta de Santa Catarina
3.
pouco mais há a dizer, caminho largando os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros lugares já estivera triste, por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. nem mesmo a vida, nenhuma morte, na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever, estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.
Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim
1997
Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.
Le poème continu
somme anthologique
Institut Camões / Chandeigne
Paris, 2002
o soar
da última neve
aos pés
da rainha negra
retratos
são pedaços de abismo
ou restos
de chão firme
já não há mais nada
nem nos livros
nem nas horas
nem nas vozes
está tudo a arder
como se mais nenhuma paisagem
coubesse
na varanda dos meus olhos