1 de fevereiro de 2011
a poesia / guillevic
Carnac
fragmentos
1
Mar à beira do nada,
Que se mistura ao nada,
Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,
Para melhor os receber.
2
Algum dia brincaremos,
Por uma hora que seja,
Nada mais que alguns minutos,
Oceano solene,
Sem que tenhas tu esse ar
De outra coisa te ocupar?
3
Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixaram
Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.
4
Tem qualquer coisa a ver
Com a noção de Deus,
Água que já não és água,
Poder desprovido de mãos e de instrumentos,
Peso sem emprego
Para quem o tempo não existe.
5
Sejamos justos: sem ti
De que me servia o espaço
E as rochas de que serviam?
6
Não temos margens, na verdade,
Nem tu nem eu.
7
Ouve bem o que faz
A pólvora explodindo.
Ouve bem o que faz
O frágil violino.
8
Sei bem que há outros mares,
Mar do pescador,
Mar dos navegadores,
Mar dos marinheiros e guerreiros,
Mar dos que querem morrer no mar.
Não sou um dicionário,
Falo só de nós dois
E quando digo o mar
É sempre o de Carnac.
9
As mesmas terras sempre
A teres de acariciar.
Jamais um corpo novo
Que possas ensaiar.
10
As profundezas, que procuramos,
Serão as tuas?
As nossas têm poder de chama.
11
Demasiado largo
Para ser cavalgado.
Demasiado largo
Para ser estreitado.
E flácido.
12
Se acaso acreditas no valor dos sons
Deves sentir-te arrepiar
Só de ouvir este nome de mar.
13
Tu vais e vens
Mas dentro de limites
Fixados por uma lei
Que não chega a ser tua.
Nós temos em comum
A experiência do muro.
guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003
2 de novembro de 2010
a poesia / josé martí
amor de cidade grande
De orgia são e rapidez os tempos.
Corre qual luz a voz; em alta torre
Qual nave despenhada em sirte horrendo,
Some-se o raio, e em ligeira barca
O homem, como alado, fende o ar.
Assim o amor, sem pompa nem mistério,
Morre, logo que nasce, de saciado!
Prisão é a casa de pombas já mortas
E ávidos caçadores! Se tantos peitos
Dos homens se laceram, e as carnes
Rasgadas rolam na terra, não se vêem
Dentro mais que frutos esmagados!
Ama-se em pé, nas ruas, entre a poeira
Dos salões e das praças; agoniza
A flor que nasce. Aquela virgem
Trémula que preferia dar à morte
A mão pura que a um ignorado jovem;
O gozo de temer; aquele sair
Do peito o coração; o inefável
Prazer de merecer; o grato susto
De caminhar depressa e sem desvio
Para a casa da amada, e às suas portas
Como um menino feliz romper em choro;
E o contemplar, de nosso amor ao fogo,
As rosas tingindo-se de cor,
- Serão patranhas? Pois, quem possuirá
Tempo pra ser fidalgo? Embora sinta
Qual áureo vaso ou quadro sumptuoso,
Dama gentil na casa de um magnata!
Ou, se tem sede, estende o seu braço
E a taça que passa a bebe toda!
Depois, a taça turva no pó rola,
E o hábil provador – manchado o peito
Por um sangue invisível – segue alegre,
Coroado de mirtos, seu caminho!
Não são os corpos já, mas só resíduos,
E campas e farrapos! E as almas
Não são como na árvore frutos ricos
Em cuja pele macia o suco doce
Transborda quando ficam bem maduros.
- Mas fruta à venda que com brutais pancadas
O rude lavrador torna madura!
Esta é a era dos lábios ressequidos!
Das noites só de insónia! De uma vida
Esmagada antes do tempo! O que nos falta
Que a ventura não existe? Como lebre
Assustada, o espírito esconde-se,
Fugindo trémulo ao caçador que ri,
Como em bosque selvoso, em nosso peito;
E o desejo, enlaçado na febre,
Qual rico caçador percorre o bosque.
Assusta-me a cidade! Que está cheia
De taças por esvaziar, ou taças ocas!
Tenho medo, ai de mim!, que este meu vinho
Seja peçonha, e em minhas veias logo
Qual duende vingador os dentes crave!
Tenho sede, - mas de um vinho que na terra
Ninguém sabe beber! Não padeci
Bastante ainda para derrubar o muro
Que me separa, oh dor, do meu vinhedo!
Bebei vós, mesquinhos provadores
De humanos vinhos fracos, esses copos
Onde o suco do lírio em grandes goles
Sem compaixão e sem temor se bebe!
Bebei! Eu sou honrado e tenho medo!
josé martí
tradução de josé bento
nova renascença
número 60/63 vol. XVI
fundação eng. antónio de almeida
1996
24 de agosto de 2010
a poesia / ângela marques
circulares
I
Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.
Porto, 1980
II
havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul
amanhã chegaremos aí
Porto, 8-11-81
III
ir à praia beber poemas
como se os meus olhos fossem estufas
onde repousam as lembranças todas
desde as aves mais remotas
até ao murmúrio da água
assim como subir as escadas de um sorriso e perder-me
nas ruas molhadas do quartier Iatin
Não sei porquê mas havia soldados
e fontes iluminadas de crianças
havia saxofones ambulantes
e lágrimas escondidas na soleira da porta
e eu — amor — encontrei um corrimão direito e châtelet
quando me despenteava pelos bares
foi assim por mais que queiras
que me afoguei naquela manhã de abril.
agora procuro as margens da ternura
onde encontre o teu rio
e fecharei os poemas:
Bonjour!
Porto, 31-5-81
IV
era assim todas as manhãs
quando me levantei do sena tinha
as mãos presas no lençol sob a ponte
tal e qual eram as pernas. que
me havias enlaçado de véspera
tudo porque já não há um sul quente
nos meus braços e
as gaivotas viajaram até mim.
não sei se estavas louco à minha espera
ou se então tinhas perdido o último métro
não sei se o café arrefeceu enquanto voltei ao mar
ou se então foi o sorriso que se esfumou nos teus cabelos
E ainda me restam poeiras da primavera
quando escrevo e não tenho um travesseiro
que me baste ao arrepio de uma corda abandonada.
e tu sabes que aqui as guitarras se abrem comigo
depois são anos e anos de melancolia onde
as aves negras se misturam aos barcos.
Mas ouve:
volto sempre a Saint-Germain-des-Prés
como uma fotografia desbotada,
sorrio de passagem ao Jean-Pierre
e tocarei à campainha
Porto, 21-7-81
V
vi uma menina com um sorriso de amêndoa
e foi como se voltasse a perder-me nas ruas da catedral
era grande a vontade de acenar
e erguer as velas, passo a passo,
até ao mais profundo dos teus olhos
é que as manhãs sabem a mel se quiseres
encontrar um amigo também
todas as águas se revolvem de dor
quando de repente voltam as costas ao sol
mas depois é muito doce o caminho da ternura
que está sempre na melodia de um gesto
assim perdido entre as luzes
mais vezes te mostrarei como são belas as palavras
vistas do cimo de um monte
enquanto vestimos um moinho de feno e cal
o sabor das portas viradas a sul
e no fim de tudo o supremo prazer
de duas mãos que mergulham na luz
Orléans, 30-10-82
VI
preciso de trazer o sol à superfície dos teus lábios
como quem faz uma festa com as palavras
preciso de um barco a roçar-me os olhos
todas as manhãs para que não se apaguem as velas
na praia. assim me visto de azul e te acendo os sentidos
enquanto um menino à beira rio espalha sorrisos pela cidade.
São estes os tempos de cal que perduram nos meus dedos
para além dos livros e no entanto
nem todas as árvores são de mel
Por aqui basta-me ouvir cânticos de água
nos portais esverdeados e depois
virão cavalos para me despentearem o corpo
agora restam as cicatrizes dos pássaros
com toda a nitidez trago na memória
os dias imprecisos em que te conheci
Eram de trigo como a terra que escolhi
e calmos e enormes
Porto, 24-1-82
VII
é em manhãs de domingo
assim vazias
quando um olhar me prende do lado de fora da vitrina
a lembrar a frescura de paris nos meus braços
que me deixo afundar até às histórias de natal
e choro como aqui escrevo
lembro rostos e mãos coloridas
não sei já onde é este café depravado
pergunto de novo porque subi até agora
Depois disto não sei se restarão horas para pintar no pescoço
ou então algum ombro para repousar estas palavras
desconheço os fios que me envolvem de nomes
assim como pessoas que me encontram nas esquinas
duma cidade fantasma dos tempos antigos
quando se fala no intervalo dum cigarro é como se
o combóio estivesse para partir e não há um cais
que nos espere muito tempo
estar aqui ou numa secretária donde se vêem as antenas amontoadas
é-me igual para ver os suicidas pendurados numa lâmpada de quarenta
ou a1agados no sangue em cima de uma colcha de renda
entretanto partem os barcos e os combóios e os aviões
e eu fico do lado de cá da vitrina
à espera de um olhar que me leve algures
Porto, 20-12-81
VIII
a casa que sonhei era branca, muito rente ao chão,
e as janelas de madeira amparavam-me os sonhos,
traziam histórias estranhas e levavam-me pelo mundo:
corria de lyon a paris, passava por veneza
para lembrar aquele degrau onde me sentei feliz
e voltava à mesa com a toalha posta de linho
una malga de leite
um naco de pão
o teu sorriso quente
a festa começava quando as mãos se encontravam
e partiam a descobrir os recantos de nós
a viagem era louca até ao chão
os corpos rolavam envolvidos em água
até que o teu cheiro se vertia pelo soalho
era tudo tão simples na casa que sonhei!
Porto, 5-4-85
IX
deixar-me escorregar lentamente pela música
largar os gestos carregados de pedras
abandonar as rugas do tempo
como quando o sol era o único amante
e descobrir o silêncio nos cânticos de morte
é sublime e imensa
a catedral onde repouso de mãos rentes à terra.
o resto eram ilusões.
Porto, 4/5-4-85
X
a cidade revestiu-se de uma bruma de gaivotas
e os gritos fundiram-se em labaredas com
as minhas lágrimas de peixe solitário
foram dias e dias de tempestade
quando as rochas se quebraram a prumo
vieram nuvens de todo o universo
juntaram-se em prece e as velas nas igrejas
vergaram-se perante as vagas
tudo imenso vazio
nem os sorrisos cabiam aqui
e muito menos o azul de outrora
até um dia…
Porto, 3-3-85
ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985
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