24 de agosto de 2010

a poesia / ângela marques





circulares




I

Vem, que os sinos não tocaram
e ainda fez pouco tempo desde que me vesti de orquídeas,
sinto a folha nítida à flor da pele
e tenho o corpo entorpecido da chuva.
Isto não é medo dos barcos, mas antes um olhar arrefecido
por um momento de silêncio são horas de voltarmos ao cais azulado
e fazermos as despedidas de verdade.
Vem, que te encontrarei em qualquer pedaço de rua,
ou nos poços que povoam a cidade: é de ti que falarei
a vida inteira até quando abrir o jornal e encontrar um velho a sorrir,
hão-de subir-me as lágrimas ao pescoço e correrei à aldeia de terra batida,
no caminho levo águas e umbrais para que as gaivotas se não sintam sós:
então será um desfiar de rosários eternos,
como o choro de minha mãe. Quando chegar
todos estarão em fila com os olhos pregados no horizonte
(será inútil lembrar-lhes os heróis antigos)
à espera dos meus sonhos que ouviram contar.
É por isso que as casas são de granito
e a lenha não chega para tantas ilusões.
Terei que ir devagar e pensar na janela que ficou do lado das sombras,
terei que resolver as entranhas dos mortos para descobrir uma rosa
terei que fechar a porta com cabelos loiros
e então dizer-lhes
que não tenho mãos.
É quando os homens vão gritar pelos espelhos
e as mulheres ajoelhar frente ao sol,
mesmo assim conseguirei rodear-me de tojo,
fingir que tenho o mar ali ao virar das cruzes,
que os amigos não me abandonaram.
Será supremo o trigo quente e o sabor dos frutos
como se tivesse comigo um homem para afagar os olhos, ou então chorar.
Viverei das cores que me arrepiam os sentidos
porque isso bastará para curar cicatrizes, a face esfregá-la-ei com urtigas
para que os lábios não tenham tempo de secar.
Com a maior das solenidades cairei por terra:
— que me atirem ao vento para poder finalmente voar
e amar sem grilhetas nos gestos
Mas a primavera ainda não voltou,
Vem, que tenho muitas viagens por fazer.

Porto, 1980





II

havia um combóio de ti que me levava
de veneza a paris
partia todas as noites de um cais azul
quando me reencontrava com fotografias velhas
e pedaços de jornal esquecidos no banco de jardim
reconheci o teu nome mesmo que a música
não trouxesse rastos de perfume da beira
onde os rostos te ficaram tão na memória
debruço-me sobre os teus olhos até
o vento me devolver às águas
e ao fundo há uma catedral de velas
que se confundem no horizonte
assim te leio postais molhados
enquanto procuras o cheiro de roupa lavada
e um pedaço de sol em cima da cómoda
descubro que são nossas as gotas de mar
penduradas naquela janela verde quando
o riso nos vem aos lábios
o rio atravessa infinitamente este barco
podemos abrir as mãos de ternura
afastar as cortinas da solidão
e acenarmos à i1ha do sul

amanhã chegaremos aí

Porto, 8-11-81




III

ir à praia beber poemas
como se os meus olhos fossem estufas
onde repousam as lembranças todas
desde as aves mais remotas
até ao murmúrio da água
assim como subir as escadas de um sorriso e perder-me
nas ruas molhadas do quartier Iatin
Não sei porquê mas havia soldados
e fontes iluminadas de crianças
havia saxofones ambulantes
e lágrimas escondidas na soleira da porta
e eu — amor — encontrei um corrimão direito e châtelet
quando me despenteava pelos bares
foi assim por mais que queiras
que me afoguei naquela manhã de abril.

agora procuro as margens da ternura
onde encontre o teu rio
e fecharei os poemas:
Bonjour!

Porto, 31-5-81




IV

era assim todas as manhãs
quando me levantei do sena tinha
as mãos presas no lençol sob a ponte
tal e qual eram as pernas. que
me havias enlaçado de véspera
tudo porque já não há um sul quente
nos meus braços e
as gaivotas viajaram até mim.
não sei se estavas louco à minha espera
ou se então tinhas perdido o último métro
não sei se o café arrefeceu enquanto voltei ao mar
ou se então foi o sorriso que se esfumou nos teus cabelos
E ainda me restam poeiras da primavera
quando escrevo e não tenho um travesseiro
que me baste ao arrepio de uma corda abandonada.
e tu sabes que aqui as guitarras se abrem comigo
depois são anos e anos de melancolia onde
as aves negras se misturam aos barcos.
Mas ouve:
volto sempre a Saint-Germain-des-Prés
como uma fotografia desbotada,
sorrio de passagem ao Jean-Pierre
e tocarei à campainha

Porto, 21-7-81




V

vi uma menina com um sorriso de amêndoa
e foi como se voltasse a perder-me nas ruas da catedral
era grande a vontade de acenar
e erguer as velas, passo a passo,
até ao mais profundo dos teus olhos
é que as manhãs sabem a mel se quiseres
encontrar um amigo também
todas as águas se revolvem de dor
quando de repente voltam as costas ao sol
mas depois é muito doce o caminho da ternura
que está sempre na melodia de um gesto
assim perdido entre as luzes
mais vezes te mostrarei como são belas as palavras
vistas do cimo de um monte
enquanto vestimos um moinho de feno e cal
o sabor das portas viradas a sul
e no fim de tudo o supremo prazer
de duas mãos que mergulham na luz

Orléans, 30-10-82




VI

preciso de trazer o sol à superfície dos teus lábios
como quem faz uma festa com as palavras
preciso de um barco a roçar-me os olhos
todas as manhãs para que não se apaguem as velas
na praia. assim me visto de azul e te acendo os sentidos
enquanto um menino à beira rio espalha sorrisos pela cidade.
São estes os tempos de cal que perduram nos meus dedos
para além dos livros e no entanto
nem todas as árvores são de mel
Por aqui basta-me ouvir cânticos de água
nos portais esverdeados e depois
virão cavalos para me despentearem o corpo
agora restam as cicatrizes dos pássaros
com toda a nitidez trago na memória
os dias imprecisos em que te conheci
Eram de trigo como a terra que escolhi
e calmos e enormes

Porto, 24-1-82




VII

é em manhãs de domingo
assim vazias
quando um olhar me prende do lado de fora da vitrina
a lembrar a frescura de paris nos meus braços
que me deixo afundar até às histórias de natal
e choro como aqui escrevo
lembro rostos e mãos coloridas
não sei já onde é este café depravado
pergunto de novo porque subi até agora
Depois disto não sei se restarão horas para pintar no pescoço
ou então algum ombro para repousar estas palavras
desconheço os fios que me envolvem de nomes
assim como pessoas que me encontram nas esquinas
duma cidade fantasma dos tempos antigos
quando se fala no intervalo dum cigarro é como se
o combóio estivesse para partir e não há um cais
que nos espere muito tempo
estar aqui ou numa secretária donde se vêem as antenas amontoadas
é-me igual para ver os suicidas pendurados numa lâmpada de quarenta
ou a1agados no sangue em cima de uma colcha de renda
entretanto partem os barcos e os combóios e os aviões
e eu fico do lado de cá da vitrina
à espera de um olhar que me leve algures

Porto, 20-12-81




VIII

a casa que sonhei era branca, muito rente ao chão,
e as janelas de madeira amparavam-me os sonhos,
traziam histórias estranhas e levavam-me pelo mundo:
corria de lyon a paris, passava por veneza
para lembrar aquele degrau onde me sentei feliz
e voltava à mesa com a toalha posta de linho
una malga de leite
um naco de pão
o teu sorriso quente
a festa começava quando as mãos se encontravam
e partiam a descobrir os recantos de nós
a viagem era louca até ao chão
os corpos rolavam envolvidos em água
até que o teu cheiro se vertia pelo soalho

era tudo tão simples na casa que sonhei!

Porto, 5-4-85



IX

deixar-me escorregar lentamente pela música
largar os gestos carregados de pedras
abandonar as rugas do tempo
como quando o sol era o único amante
e descobrir o silêncio nos cânticos de morte
é sublime e imensa
a catedral onde repouso de mãos rentes à terra.
o resto eram ilusões.

Porto, 4/5-4-85



X

a cidade revestiu-se de uma bruma de gaivotas
e os gritos fundiram-se em labaredas com
as minhas lágrimas de peixe solitário
foram dias e dias de tempestade
quando as rochas se quebraram a prumo
vieram nuvens de todo o universo
juntaram-se em prece e as velas nas igrejas
vergaram-se perante as vagas
tudo imenso vazio
nem os sorrisos cabiam aqui
e muito menos o azul de outrora

até um dia…

Porto, 3-3-85








ângela marques
circulares
nova renascença
abril/junho
primavera de 1985






8 comentários:

Há.dias.assim disse...

Mas que bela poesia. Obrigada. não conhecia.

lena disse...

li e reli, lindíssima e tão sentida
não conhecia e permite que a roube. não conheço o livro
fico a repousar sobre tão belo poema

obrigada Gil pela partilha.

beijinho meu

lena

C-ASA disse...

tão bela viagem... vou partilhar...

C-ASA disse...

tão bela viagem... vou partilhar...

nydia bonetti disse...

Belíssimos. Abçs.

Unknown disse...

OBRIGADA, Gil T. Sousa!
Antes de mais, peço desculpa pelo relativo atraso da minha visita de agradecimento mudo (só dei conta desta minha presença através do site do Contagiarte. Não tenho palavras que cheguem para agradecer o gesto e as palavras que as pessoas aqui deixaram.
Estou grata do coração.

gs disse...

Olá Ângela,

Houve muita gente a escrever-me por ter achado a sua poesia brilhante e a perguntar-me se tem publicado.
Os únicos textos que conheço são os que vi publicados naquele nr. da “nova renascença”, e que me apressei a partilhar nos meus blogues, por me parecerem excepcionais.

Estou muito contente por ter deixado o seu comentário e por a ver feliz pela menção neste blogue.

Eu é que tenho que lhe agradecer por tão excelente poesia e pela sua calorosa simpatia.

Muito obrigado,
Um abraço
Gil t sousa

noone disse...

obrigada Gil, obrigada Ângela!
até enche a alma!