15 de junho de 2010

os livros / paolo giordano







PAOLO GIORDANO, A SOLIDÃO DOS NÚMEROS PRIMOS




Os números primos apenas são divisíveis por 1 e pelo próprio número. Estão no lugar que lhes é próprio na infinita série dos números naturais, esmagados como todos entre dois, mas um passo mais além relativamente aos outros. São números desconfiados e solitários e, por isso, Mattia achava-os maravilhosos. Por vezes achava que tinham ido parar por engano àquela sequência, que tinham ficado lá aprisionados como pequeninas pérolas num colar. Outras vezes, ao invés, desconfiava que também eles gostassem de ser como os demais, apenas uns números quaisquer, mas que por algum motivo não haviam sido capazes. O segundo pensamento surgia-lhe sobretudo à noite, no emaranhado caótico de imagens que antecede o sono, quando a mente está demasiado débil para mentir a si mesma.
Numa cadeira do primeiro ano Mania estudara que entre os números primos há alguns que ainda são mais especiais. Os matemáticos chamam-lhes primos gémeos: são pares de números primos que estão próximos um do outro, aliás, quase próximos, pois entre eles existe sempre um número par que os impede de se tocarem realmente. Números como, por exemplo, 11 e 13, 17 e 19, 41 e 43. Tendo paciência para continuar a contá-los descobre-se que estes pares se vão tornando progressivamente mais raros. Descobrem-se números primos cada vez mais isolados, perdidos naquele espaço silencioso e cadenciado feito apenas de cifras e nota-se o pressentimento angustiante de que os pares encontrados até aí foram um facto acidental, cujo verdadeiro destino é o de ficarem sozinhos. Depois, quando se está prestes a desistir, quando já não se tem vontade de contar mais, eis que se descobrem, abraçados, mais dois gémeos. Entre os matemáticos é convicção comum que por mais que se avance na contagem, existirão sempre mais dois, ainda que ninguém saiba dizer onde, até serem descobertos.
Mattia achava que ele e Alice eram assim, dois primos gémeos, sós e perdidos, próximos mas não o suficiente para se tocarem realmente. A ela nunca lho dissera. Quando imaginava confessar-lhe estas coisas, a fina camada de suor sobre as suas mãos evaporava-se por completo e durante uns bons dez minutos não era capaz de tocar em nenhum objecto.
Num dia de Inverno regressara a casa depois de ter passado a tarde com ela, que durante o tempo todo mais não fizera que mudar de um canal para o outro da televisão. Mattia não prestara atenção às palavras nem às imagens. O pé direito de Alice, apoiado na mesa da sala de estar, invadia o seu campo visual, invadindo-o pela esquerda como a cabeça de uma serpente. Alice dobrava e flectia os dedos com uma regularidade hipnótica. Aquele movimento repetido fizera-lhe crescer algo de sólido e inquietante no estômago e ele esforçara-se por manter o mais que podia o olhar fixo, de modo a que nada mudasse naquele enquadramento.
Chegado a casa tirara um monte de fo1has em branco do caderno de argolas, uma espessura suficiente para que a caneta pudesse correr por cima maciamente, sem riscar a superfície rígida da mesa. Igualara as fo1has com as mãos, primeiro em cima e em baixo e depois dos lados. Esco1hera a caneta mais cheia entre as que tinha em cima da escrivaninha, tirara-lhe a tampa e enfiara-a em cima para não a perder. Depois, começara a escrever no exacto centro da fo1ha, sem necessidade de contar os quadradinhos.
2760889966649. Voltara a tapar a caneta e pousara-a ao lado da folha. Dois mil setecentos e sessenta mil milhões oitocentos e oitenta e nove milhões novecentos e sessenta e seis mil seiscentos e quarenta e nove, lera em voz a1ta. Depois, de novo, em voz baixa, como que para se apropriar daquele trava-língua. Decidiu que aquele número seria o seu preferido. Tinha a certeza de que mais ninguém no mundo, mais ninguém em toda a história do mundo, alguma vez tivesse parado a considerar aquele número. Provavelmente, até então, ninguém o havia sequer escrito numa folha de papel e muito menos pronunciado m voz alta.
Após um instante de hesitação descera duas linhas e havia escrito 76O889966651. Este é o número dela, pensara. Na sua cabeça os números ganharam a cor do pé lívido de Alice, recortado contra os clarões azulados do te1evisor.
Poderiam também ser dois primos gémeos, pensara Mattia. Se o são...
Estacara de repente perante aquele pensamento e começara a procurar divisores para os dois números. Com o 3 era fácil: bastava fazer a soma das cifras e ver se era um múltiplo de 3. O 5 estava de fora à partida. Ta1vez houvesse uma regra também para o 7, mas Mattia já não se lembrava dela e assim pusera-se a fazer a divisão em coluna. O 11, o 13 e por aí adiante, em cálculos cada vez mais complexos. Enquanto experimentava com o 37 o sono surpreendera-o pela primeira vez e a caneta deslizara pela página. Chegado ao 47 desistira. O vórtice que lhe enchera o estômago em casa de Alice perdera-se, diluíra-se nos seus múscu1os como os cheiros no ar e ele não fora capaz de o voltar a sentir. No quarto só estava ele e uma quantidade desordenada de fo1has de papel, pejadas de inúteis divisões. O relógio marcava três e um quarto da manhã.
Mattia pegara na primeira fo1ha, com os dois números escritos ao centro e sentira-se um imbecil. Rasgara-a ao meio e depois, de novo, ao meio, até as bordas não serem suficientemente rígidas para 1hes poder passar, qua1 lâmina, com a unha do anelar esquerdo.






paolo giordano
a solidão dos números primos
trad. josé j. c. seixas
bertrand editora
2009