31 de dezembro de 2008

paisagem interior aquecida






e os vulcões a fecharem-se
como flores no gelo

tu numa bicicleta de vento
a pedalar o fogo

por entre as nuvens,
tão novos caminhos. ah! tão novos!

tão altos os céus, ah! sempre tão altos
e muito ao longe o mundo:

uma vela podre no universo
mas ainda assim a luz

ainda assim
a casa para onde voltamos.








16 de dezembro de 2008

a poesia / jean cocteau

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O pacote vermelho



O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo essa nojeira. Estou envenenado até aos ossos. Cantava no escuro, e agora é o canto o que me mete medo. Mais ainda: estou leproso. Sabem daquelas manchas de humidade que parecem um perfil? Não sei que encanto da lepra engana o mundo e o autoriza a beijar-me. Pior para ele! As consequências não me dizem respeito. Nunca exibi senão chagas. Fala-se de graciosa fantasia: a culpa é minha. É loucura alguém exibir-se inutilmente.

A minha desordem empilha-se até ao céu. Os que eu amei existiam pendurados do céu por um elástico. Voltasse eu a cabeça... e já lá não estavam.

De manhã, debruço-me, debruço-me, e deixo-me cair. Caio de fadiga, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não sei um número, uma data, um nome de rio, uma língua, viva ou morta. Tenho zero em geografia e em história. Se não fossem uns passes de mágica, corriam comigo. Além do mais, roubei os documentos a um tal J.C., nascido em M.L., no dia......, e que morreu com dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

Esta cabeleira, este sistema nervoso, mal implantados, esta França, esta terra, não me pertencem. Dão-me agonias. Sempre os dispo à noite, em sonhos.

Pois aqui largo o pacote. Que me fechem num hospício, que me linchem. Quem puder que entenda. Eu sou uma mentira que diz sempre a verdade.








jean cocteau
poesia do século xx
(de thomas hardy a c. v. cattaneo)
antologia e tradução de jorge de sena
editorial inova
1978