29 de outubro de 2008

a poesia / jean genet








E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.

O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.

È visível no funâmbulo que refiro,
no olhar triste
que deve reportar-se às imagens de uma infância miserável,
inesquecível,
em que ele teve consciência
de ser abandonado.

(...)







jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984







24 de outubro de 2008

a poesia / fernando lemos





não há tempo






Não há tempo
há horas
Não há um relógio

hábitos que
me habitam


O poema dói
o ponteiro corta
a hora que queima
a morte simula

respira
para não me distrair








fernando lemos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998






7 de outubro de 2008

carta de alforria






1/

já escrevi tantas cartas
de alforria!

não que tivesse sido genial
ou poderoso

mas porque
fui um homem livre

hoje contemplo
a minha grande casa branca

a minha grande casa branca
em ruínas

e sei que valeu a pena
ter resgatado tantos e tanta coisa
ao vazio e á solidão

valeu a pena
porque conquistei o meu direito
a ter medo







v de veneza
gil t. sousa
agosto de 2001






2 de outubro de 2008

a poesia / antónio manuel pires cabral





Recado aos corvos





Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incomensurável
memória das labaredas







antónio manuel pires cabral
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990