28 de janeiro de 2008

a poesia / samuel beckett

[ três poemas de amor]





cascando



1

fosse apenas o desespero da
ocasião da
descarga de palavreado

perguntando se não será melhor abortar que ser estéril

as horas tão pesadas depois de te ires embora
começarão sempre a arrastar-se cedo de mais
as garras agarradas às cegas à cama da fome
trazendo à tona os ossos os velhos amores
órbitas vazias cheias em tempos de olhos como os teus
sempre todas perguntando se será melhor cedo de mais do
que nunca
com a fome negra a manchar-lhes as caras
a dizer outra vez nove dias sem nunca flutuar o amado
nem nove meses
nem nove vidas


2

a dizer outra vez
se não me ensinares eu não aprendo
a dizer outra vez que há uma última vez
mesmo para as últimas vezes
últimas vezes em que se implora
últimas vezes em que se ama
em que se sabe e não se sabe em que se finge
uma última vez mesmo para as últimas vezes em que se diz
se não me amares eu não serei amado
se eu não te amar eu não amarei

palavras rançosas a revolver outra vez no coração
amor amor amor pancada da velha batedeira
pilando o soro inalterável
das palavras

aterrorizado outra vez
de não amar
de amar e não seres tu
de ser amado e não ser por ti
de saber e não saber e fingir
e fingir

eu e todos os outros que te hão-de amar
se te amarem


3

a não ser que te amem














samuel beckett
as escadas não têm degraus 3

trad. miguel esteves cardoso
livros cotovia
março 1990


27 de janeiro de 2008

os livros / daniel pennac



DANIEL PENNAC, COMO UM ROMANCE





11


A intimidade perdida…

Neste princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos, descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.

O amor ganhava um novo rosto.

E era gratuito.



12


Gratuito. Pelo menos era assim que ele o entendia. Um presente. Um momento fora de todos os momentos. Qualquer que fossem as circunstâncias. A história nocturna aligeirava-lhe o peso do dia. Largavam-se as amarras. Ia com o vento, levíssimo, o vento que era a nossa voz.

Não lhe pedíamos que pagasse a viagem, não lhe exigíamos nada, nem um centavo, não lhe pedíamos a menor contrapartida. Nem sequer era uma recompensa. (Ai as recompensas… a necessidade de alguém se mostrar recompensado!) No nosso caso, tudo era gratuito.

A gratuidade é a única moeda da arte.







daniel pennac
como um romance
trad. francisco paiva boléo
edições asa
1994


2 de janeiro de 2008

a poesia / e.e. cummings





[ i ]






pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;


se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.












e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998