17 de agosto de 2007

a poesia / antónio manuel azevedo



que mal podem as palavras





1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.

Não é tudo. Imagina
A devastação.



2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.



3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.



4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.



5
Desde que o mês é este
oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja

tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber

mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.



6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.

À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.



7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.



8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.



9)
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.

Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.

Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.



10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.

Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.







antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990







1 comentário:

Anónimo disse...

... que mal podem as palavras como a propósito de dizer a/de António Manuel de Azevedo:
(Isto há de ir por linhas o que não tem de fazer nada mais fácil.)
A ideia há de ser explicar uma luz que se acende por dentro e que traz um nome de poeta e um verso por título quase fogo bandeira farol
O poder da palavra texto sulca a pele dos sentidos de quem lê e sulca veemente a ser leito para um rio com uma autenticidade eventualmente insustentável
...pois; as linhas disto de dizer de que mal podem as palavras hão de ser quase linhas difíceis pelo ser do tanto que tão bizarramente cabe nas palavras (por muito que teimem em explodir dos versos).
Não sei se o texto intenta em lançar uma nova pirotécnia numa noite enluarada de poesia ou se
emana do romper de águas de um parto deliciosamente exótico
deste poeta, não sei... e devia saber. Devia ler mais do mal que podem as palavras... dele. Vou fazer por isso, prometo.
[[]]s antónio.
Luis Melo (ex-Feel)