22 de julho de 2007

a poesia / luís miguel nava




abismos






Entre estes meus amigos através
de cujos corações arde o horizonte e a ponte
da qual o seu sorriso era um dos arcos
abriram-se os abismos.











luis miguel nava
poesia completa
1979-1994
rebentação
publicações dom quixote
2002








20 de julho de 2007

os livros / philippe soupault




PHILIPPE SOUPAULT, MAR VERMELHO





P.S. em 1982

O Mar Vermelho é um íman que atraiu e reteve os homens que iriam agitar os alicerces do mundo.

Não é que nos obstinemos a determinar o segredo das partidas de Rimbaud nem descobrir necessariamente o seu esquecimento da poesia, mas, mais simples do que isso, saber dos porquês do Mar Vermelho e suas margens fascinarem o viajante infatigável, nunca satisfeito, sempre à procura de novas luzes e novos mistérios.

Foi nessas margens que eu segui os itinerários traçados pelo futuro “negociante”, itinerários que ele finalmente havia preferido — ele que falava em regressar a França para se casar e fazer um filho que seria “engenheiro”.

Tendo procurado as pistas de Rimbaud em Londres e em Chipre, fui a Aden, vi a Arábia, Harar, a Etiópia. Em 1951. Ao explorar o Mar Vermelho, vi-me metamorfoseado. Não foi tanto a descoberta de um universo diferente; nem a solidão; mas uma metempsicose. Je est un autre. O homem que eu acreditava ser já não se parecia comigo. Experiência dolorosa mas irreversível. Inútil lutar contra esta ruptura. O olvido.

A sombra de Rimbaud, imperceptível, era impossível não se ficar obcecado por ela. Sombras. O que o vidente não podia conhecer nem mesmo imaginar.

E no entanto...

Os que encontrei eram também eles vítimas do esquecimento. Mesmo aquele milionário, senhor Besse que, alguns anos depois da partida do negociante havia feito fortuna ao retomar por sua conta os projectos que o ardenense teve de abandonar. Mesmo aqueles fantasmas ou aqueles destroços que erravam de Djibuti a Aden sem espírito de regresso.

A última viagem, a viagem da agonia do carregador de luíses de ouro.

Saberia ele que ia morrer?

Paris, 1982





philippe soupault
mar vermelho
trad. célia henriques e vítor silva tavares
& etc
2000




13 de julho de 2007

memória






e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas










7 de julho de 2007

luto





atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração






3 de julho de 2007

a poesia / rené char







Bruscamente recordas-te de que tens um rosto. Os traços que formavam o seu relevo não eram todos traços de desgosto, antigamente. Em direcção a essa paisagem múltipla erguiam-se seres dotados de bondade. Nela, o cansaço não seduzia apenas naufrágios. Nela respirava a solidão dos amantes. Olha. O teu espelho transformou-se em fogo. Insensivelmente, recuperas a consciência da tua idade (que saltara do calendário), desse acréscimo de existência cujos esforços construirão uma ponte. Recua no interior do espelho. Se não consumires a sua austeridade, pelo menos a sua fertilidade não se esgotou.










rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000







1 de julho de 2007

a poesia / brian patten


é sempre a mesma imagem





é sempre a mesma imagem;
a tua, saindo nua dos rios do Outono,
o corpo envolto em vapor, coberto de chuva,
gotas azuis e cinzentas desprendem-se de ti,
quando falas
folhas caem e desintegram-se.

é sempre a imagem dos teus seios,
cheio da violência de plantas marinhas
que vibram quando tocadas; peixes
acasalam por debaixo de ti; o teu corpo azul, a tua
sombra seguindo-o,
ambos como espectros vistos de esplanadas distantes
por um público assustado.

a mesma imagem,
mas agora um lago cercado por fetos,
e, meio visíveis por entre a neblina,
mil amantes seguindo-te nus
sem deixar rasto nas esquinas da madrugada.







brian patten
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993