25 de junho de 2007

os livros / douglas coupland


DOUGLAS COUPLAND, A VIDA DEPOIS DE DEUS




A seguir fiquei mesmo cheio de solidão e tão farto das coisas más da minha vida e do mundo que disse para comigo: «Meu Deus, faz de mim um pássaro… É tudo o que sempre desejei… Um pássaro branco e ágil livre de vergonha, de maldade e de medo da solidão, e dá-me outros pássaros brancos com quem voar, dá-me um céu tão grande e tão vasto que, se eu nunca quiser descer para a terra, não tenha que o fazer.»

Mas Deus, em vez disso, deu-me estas palavras, e eu digo-as aqui.








douglas coupland
a vida depois de deus
trad. telma costa
teorema
1994

22 de junho de 2007

a poesia / miguel esteves cardoso



Rara





Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





20 de junho de 2007

san giorggio maggiore







é neste muito silêncio que se me repete o tempo

no horizonte impossível
ou no ângulo forte desta sombra sagrada
rebentam sonhos
crepitam anseios de viagem
pela ideia antiga de universo
e de humanidade

estes pássaros
dançam só para mim
estou só
neste céu com que me cobres

e são tão
frescas as melodias da água

que por ti me hei-de um dia
pôr a morrer





(veneza, agosto de 2001)









13 de junho de 2007

a poesia / jean daive




ÉDEN



Uma mulher a medir.

Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.

Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.

É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.



*



Isso
tece um som,

Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,

Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.

Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.

Entras
outra vez só
num
som da rua.

Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.



*



Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.

A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.

O jardim arde.

Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.

Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.

Mas evita-se um sentido cinético do mundo.

E a necessidade reencontrada
do isolamento.

Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?

Sorris. Apreendes uma separação.



*



Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?

O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.

Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.

É o fim do dia. É o fim das legendas.

A escuridão não tem pó
como a mulher.

Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.

Mais tarde.

Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.



(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)









jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje
tradução pedro tamen
relógio d´água
1993








10 de junho de 2007

no lado maior do que não há





ir
no redondo da vela mais branca

navegar
o silêncio dos clarões

passar
por nenhuma ponte

morrer
no lado maior do que não há











9 de junho de 2007

onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração







6 de junho de 2007

os livros / baudelaire


BAUDELAIRE, A FANFARLO





Entre nós, não se dá grande valor à arte da dança, diga-se de passagem. Todos os grandes povos e, antes de mais, os da antiguidade, da Índia ou da Arábia, a cultivaram a par da poesia. Para certas sociedades pagãs de outrora, a dança está tanto acima da música como o visível e as coisas criadas estão acima do invisível e do informe. Só aqueles a quem a música consegue comunicar impressões semelhantes às da pintura me poderão compreender. A dança é capaz de revelar tudo o que a música contém de misterioso e tem ainda o mérito de ser humana e tangível. A dança é a poesia dos braços e das pernas, é a matéria, graciosa e terrível, animada e embelezada pelo movimento. Terpsicore é uma Musa do Sul; imagino-a muito morena, a dançar pelas searas douradas; os seus movimentos, impregnados de uma cadência precisa, constituem também sublime motivo para a estatuária. Mas a católica Fanfarlo, não contente em rivalizar com Terpsicore, chamava ainda a si toda a arte das divindades mais modernas. Nessas zonas de bruma, confundem-se, entre si, formas de fadas e de ondinas menos indolentes e vaporosas. A Fanfarlo foi ao mesmo tempo a personagem de um capricho de Shakespeare e a de uma comédia bufa à italiana.
(…)










charles baudelaire
a fanfarlo
trad. antónio guerreiro e fernando guerreiro
hiena editora
1988




2 de junho de 2007

seguíamos a água




seguíamos a água
porque a secura nos cercava
como um animal
quase louco

do alto de pedras antigas
avistávamos cidades
para onde partíamos
a todas as horas

metrópoles
de ventos eufóricos
que nos sopravam
a humanidade inteira

na forma
do grito e do olhar
e no incêndio infinito
do sangue

e eram tão poderosas
as palavras que sabíamos
tão nobres os silêncios
por onde elas espelhavam

e tão grande
era tão grande o coração
que as ouvia,
que as guardava

num secreto
para sempre!