27 de abril de 2007

os livros / albert camus



ALBERT CAMUS, CADERNOS III




*

«Desejava duas coisas, a primeira era a possessão absoluta. A segunda era a lembrança absoluta que ele lhe queria deixar. Os homens sabem tão bem que o amor está votado à morte que trabalham pela memória desse amor durante todo o tempo que vivem. Ele queria deixar-lhe uma grande ideia de si mesmo a fim de que o seu amor fosse grande, definitivamente. Sabia, porém, agora, que ele próprio não era grande, que ela, mais cedo ou mais tarde, o viria a saber um dia, e que, cm vez da recordação absoluta, seria para ele pelo menos a morte absoluta. A vitória, a única vitória seria reconhecer que o amor pode ser grande mesmo quando o amante o não é. Mas ele ainda não estava preparado para essa terrível modéstia.»

«Levava consigo, gravada a ferro em brasa, a recordação desse rosto roído pela dor... Ë nesta época, aproximadamente, que ele perde a estima de si mesmo que até aí sempre o havia amparado... Inferior ao amor, ela tinha razão.»

«Pode-se amar estando a ferros, através das paredes de pedra espessa de vários metros, etc... Mas se uma parte do coração, por mais pequena que seja, estiver submetida ao dever, o amor verdadeiro torna-se impossível.»

«Ele imaginava um futuro de solidão e de sofrimento. E encontrava um prazer difícil nessas imaginações. Mas era por supor o sofrimento nobre e harmonioso. E na realidade imaginava assim um futuro sem sofrimento. Desde o instante em que a dor surgia, pelo contrário, já não havia vida.»

«Ele dizia-lhe que o amor dos homens é assim, uma vontade, não uma graça, e que ele próprio tinha de ser conquistado. Ele jurava-lhe que isso não era o amor.»

«Perdera tudo, até a solidão.»

«Ele gritava-lhe que isso era a morte para ele, mas este grito não a atingia. Ë que, no cimo da sua exigência, achava natural que ele morresse, pois que falhara.

«Tudo deve ser perdoado, e sobretudo o facto de se existir. A existência acaba sempre por ser uma má acção.»

«Foi nesse dia que a perdi. A desgraça só mais tarde pareceu dar-se. Mas ele sabia que fora nesse dia. Para a conservar deveria nunca ter falhado. O rigor dela era de tal ordem que ele não podia cometer um único erro, dar mostras de uma só fraqueza. De qualquer outro teria ela admitido isso, tinha-o admitido e admiti-lo-ia. Não dele. São os privilégios do amor.»

«Há uma honra no amor. Perdida ela, o amor nada é.»


*








albert camus
cadernos III
(caderno nr. 5 1948-1951)
tradução antónio ramos rosa
livros do Brasil
1966








15 de abril de 2007

a poesia / marguerite yourcenar





e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.







marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995








e tu, vais-te embora? vais-te embora?...








6 de abril de 2007

a poesia / sophia de mello breyner andresen






Através do teu coração
[ passou um barco
Que não pára de seguir sem
[ ti o seu caminho








sophia de mello breyner andresen
navegações
caminho
1996

5 de abril de 2007

os livros / jill paton walsh



JILL PATON WALSH, O CONHECIMENTO DOS ANJOS


(…)

O problema era que Palinor não podia valer-se do argumento a que qualquer sarraceno ou qualquer outro espírito exótico podia recorrer — que pertencia a outra religião e estava fora do âmbito da Igreja; e não porque o que ele negava não era determinado aspecto da doutrina da Igreja, mas algo que todos os seres humanos sabiam, ou por conhecimento inato ou graças à razão natural. Muito simplesmente, ele não podia negar Deus. Era urna blasfémia impudente e terrível, pior do que qualquer heresia sobre a natureza de Cristo, ou a presciência de Deus, ou o livre arbítrio, ou qualquer coisa do género. Qual a desculpa concebível para que um homem como aquele incorresse em tal erro? Não se lhe aplicava de modo algum a exculpação dos estúpidos; talvez tivesse sido desencaminhado ou mal ensinado.
Mas Beneditx podia evidentemente convertê-lo através do raciocínio. Aquilo que devia saber desde sempre, desde que nascera, passaria a ser apenas urna questão de interesse histórico ao ser ultrapassada pela clarividência que Beneditx lhe transmitiria. Não conseguia acreditar que fosse impossível convencer aquele homem afável e inteligente que tinha à sua frente. Beneditx tinha fé no poder da razão. Preparou-se para expor as provas que S. Tomás considerava válidas; eram cinco, se bem que uma seria certamente suficiente. E, tendo-se preparado, foi com alegria que enfrentou o seu segundo encontro com Palinor.
Os dois homens iam passeando calmamente por um caminho verdejante e sombrio do jardim, com um riacho a cantar-lhes alegremente aos pés.
— Em primeiro lugar, na natureza nada se move, a não ser que seja movido por qualquer outra coisa — foram as palavras com que Beneditx abriu a discussão. Um pau que é brandido no ar é movido pelo homem que está a segurá-lo. Mas este movente tem, por sua vez, de ser movido por qualquer outra coisa, e essa outra coisa por uma outra. Esta cadeia não pode prolongar-se indefinidamente, recuando até ao infinito, de contrário chegar-se-ia a um ponto em que não existiria um primeiro movente nem, consequentemente, qualquer outro. Por isso, é necessário chegar a um primeiro movente, cujo movimento não foi iniciado por outro, e que toda a gente compreende que é Deus.
— Tenho de responder a isso? — perguntou Palinor.
— Espera. Vou apresentar-te três fundamentos sólidos da fé e verás se não te convencem.
— Estou nas tuas mãos, amigo — disse Palinor.
Falava num tom grave, mas com um certo toque de afeição, quase de divertimento. Sentia o prazer que um adulto instruído sente na presença de uma criança maravilhosa, de espírito perspicaz e inocente. Aliás, ninguém podia duvidar da avidez implícita nos esforços de Beneditx para o persuadir nem deixar de ver quão bem intencionadas e benignas eram as suas tentativas. Palinor via obviamente com mais clareza do que Beneditx a dificuldade da tarefa que este empreendera; mas, como acontece com uma criança de ambições românticas, era mais amável da parte dele não ser demasiado aniquilador.
— Em segundo lugar — prosseguiu Beneditx —, no mundo sensível que nos rodeia apercebemo-nos de que há elos de causalidade. Uma coisa causa outra e é, por sua vez, o efeito de uma outra causa. Não há nada que possa ser a sua própria causa, pois, para isso, teria de ser anterior a si mesma, o que é impossível. Mas esse elo de causalidade não pode recuar até ao infinito, senão não haveria uma primeira causa e, logo, um primeiro efeito, porquanto afastar a causa implica afastar o efeito. Por isso, a percepção pelos nossos sentidos de causas e efeitos obriga-nos a aceitar uma causa sem causa, uma primeira causa eficiente, a que toda a gente chama Deus. Em terceiro lugar, há coisas na natureza que podem existir ou não existir, pois são criadas e consumidas, nascem e morrem. É impossível que essas coisas tenham existido sempre, pois tudo aquilo que a certa altura pode deixar de existir tem necessariamente de não ter existido em determinado momento. Por isso, se tudo pudesse deixar de existir, teria de haver um momento em que podia não ter existido nada. Se isto fosse verdade, ainda hoje não existiria nada, porque aquilo que não existe surge a partir de algo que já existe. Ou seja, se num determinado momento não existisse nada, nada poderia ter começado a existir e nada existiria no momento presente, o que é um absurdo. Por isso, tudo aquilo que existe não é meramente possível; tem de existir algo cuja existência é necessária. Mas a necessidade de uma coisa necessária é causada por outra coisa qualquer e não podemos ir até ao infinito numa cadeia de necessidades, como já vimos em relação aos moventes e às causalidades, pelo que não podemos deixar de postular a existência de um ser, cuja necessidade adveio de si próprio, e não só não resulta de um outro ser como é a causa da necessidade de outros seres. Para todos os homens este ser é Deus.
Houve um silêncio, enquanto Palinor meditava sobre estas palavras. Chegaram ao fim do caminho que se abria sobre o vale, permitindo uma visão abrangente e suavemente descendente dos laranjais e do verde prateado dos olivais que cobriam o vale, que se tornava ora mais claro, ora mais escuro, como um lago exposto à brisa da manhã.
— Esses argumentos vão todos dar ao mesmo — disse Palinor. — Tudo aquilo que se move é movido por outra coisa; por isso, há algo que faz mover tudo aquilo que se move. Todos os efeitos têm uma causa; por isso, há uma causa donde resultam todos os efeitos. Continuando, todas as estradas vão dar a um lado qualquer, por isso há um lado qualquer aonde todas as estradas vão dar; todos os rios têm uma nascente, por isso há urna nascente onde qualquer rio começa; todos os filhos têm uma mãe, por isso alguém tem de ser a mãe de alguém; todas os instrumentos têm um fim, por isso há um fim a que cada instrumento se destina... Tenho de continuar?
— Espera — pediu Beneditx. — Estás a falar como alguém que, estando diante de urna árvore e vendo que um ramo nasce de um braço e muitos ramos de muitos braços, nega a existência do tronco da árvore. Se seguires a multiplicidade cada vez mais para trás, acabarás por chegar ao tronco único.
— Mas, se continuares, chegarás à multiplicidade das raízes. E, se te afastares, verás que a árvore é apenas uma entre milhares de outras que existem na floresta. O problema, Beneditx, é que afirmas que as coisas que existem no mundo à nossa volta têm de ter uma explicação e apresentas Deus como a explicação. Mas, para mim, o mundo que está à nossa volta não me suscita quaisquer dúvidas nem necessita de qualquer explicação. Para mim, tudo aquilo que existe aos nossos olhos, ao nosso tacto, ao nosso paladar e ao nosso olfacto, é possível, e o que é possível não é impossível. Daí que eu não veja a necessidade de Deus.
— Mas hás-de ver — disse Beneditx, num assomo de paixão. Apresentar-te-ei as provas do grau e do desígnio. Hás-de ver!







jill paton walsh
o conhecimento dos anjos
trad. maria do carmo figueira
gradiva
1996