26 de março de 2007
as três comadres
(sobre um quadro da alice loureiro)
no fim dum caminho antigo,
por entre as pedras e o céu,
há vozes que anunciam um outro tempo.
um tempo escondido no segredo das mentes,
como as almas se escondem
nas pedras das cidades que pecaram.
é a maldade simples da terra,
a intriga das ervas,
a sentença do que vive.
não há aqui eternidade,
nem morte,
e só os olhos levam o que lá diz;
em molhos de cor a lembrar cereais maduros,
mel guardado como um tesouro
para um amanhã esperado.
tudo acaba ali,
no precipício que divide o real
e anuncia o infinito com uma força nua de sinais.
e é nesse acabar
que uma outra realidade ganha forma,
tranquila como as coisas eternas,
enigmática como as coisas que, não sendo vivas,
obedecem a um outro sangue,
a um pulsar de que nunca saberemos o nome....
gil t. sousa
22 de março de 2007
a poesia / herberto helder
Vem das estampas de ouro, o sono encurva-lhe os cabelos,
fica branca de andar encostada à noite,
e respira, respira,
sim respira,
como uma colina tão nua
que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada,
ou água cruel aberta
por ti,
tubarão crepitando pelo Índico,
entre geladas barragens de sal em rama,
com uma garra no ventre,
uma síncope,
um mergulho como uma flor
que se não chama negra,
nem cujo nome pode ser dito assim:
aquilo é a paixão,
mas que,
tremendo,
se pode pronunciar como beleza este espaço,
crime esta paisagem,
ou então:
a lua dança
como um vestido bêbedo
— ata lenços de um branco que desfaleça nos dedos,
e atira fora esse ramo,
e aí verás como é que eu me movo:
sim,
eu respiro,
estou direita,
deixa-me passar
— aqui vai uma ilha de pés descalços,
aqui é um espelho caminhando como a voz
por onde entram e saem
imagens cambaleantes,
e tu chamas-te então:
como eu vi o tempo,
era uma maneira cega de haver junquilhos
que giravam até se arrancarem dos terrenos nocturnos
e viverem como crianças ondulantes,
esquecidas do seu texto,
num exílio de espanto e beleza brusca,
de fazer pensar,
súbito,
na morte prometida a todas as coisas
que se aproximam demasiado do nosso amor,
e é então que tu dizes:
há casas desabitadas,
eu estou nessas casas
que tremem quando movo as mãos,
a minha cabeleira palpita:
é o sangue que sobe do coração apavorado
e se faz dócil,
quando o pente arrefece um a um os cabelos,
e então o meu nome é:
pimenta,
areia sentada,
abertura da luz para onde saltam laranjas que pulsam,
ah, deixa-me passar,
digo-te baixo como hoje me chamo
e como nunca mais me chamarei:
loucura,
loucura unida à rítmica matéria das coisas,
e se abrires o teu sono,
dessa vez única verás o que sou:
uma figura
impelida pela vertigem,
a inclinação do teu próprio conhecimento
sobre a morte iluminada por todos os
lados,
depois terei um só nome:
revelação,
até que os dias arquejantes me sufoquem e,
no terror que te atravessa como água dolorosa,
eu seja a tua ilha a prumo,
onde habitas,
tu próprio uma ilha desabitada,
entre a lua
como uma rosa infrene e os peixes frios
e selvagens.
herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968.
4 de março de 2007
água-forte
1)
sou tão invisível, hoje! nenhuma ponte me apanha no abismo de acordar.
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