16 de dezembro de 2007

a poesia / leopoldo maría panero






E resta

detrás do nada um ofegar tão só
perseguido pelas árvores, perseguido pelos

bosques

que sussurram ao ouvido palavras obscenas
dizendo não és homem, és
menos que um sussurro.






leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001




paisagens urbanas










gil t sousa
paisagens urbanas
(fotografia)
2007

17 de novembro de 2007

kopenhagen script






-1-

as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?




-2-

são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero



-3-

pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler









29 de outubro de 2007

a poesia / al berto




carta da árvore triste


[…]

escrevo-te enquanto não amanhece
a morte desperta em mim uma planta carnívora
o mundo parece despedaçar-se pelos desertos do delírio
pântano de lodo entre a pele da noite e a manhã
espaço de penumbras e de incertezas
onde podemos perder tudo e nada desejarmos ainda
por isso aproveito o pouco tempo que me sobeja da noite
este vácuo lento este visco dos espelhos
espessa escuridão agarrada à memória debaixo da pele
começa a asfixia o perigo de ter amado
no mais profundo segredo das noites devorávamo-nos
e um barco tremeluzia pelas cortina do quarto
como um presságio
nos objectos e a roupa atirada para cima das cadeiras
revelam-me a pouco e pouco a desolação em que tenho vivido
.
é-me desconhecida a vida fora dos sonhos e dos espelhos
tu brincavas com o sangue
a noite cola-se-me aos gestos
enquanto balbucio com dificuldade esta carta
onde gostaria de deixar explicadas coisas
não consigo
o silêncio é o único cúmplice das palavras que mentem
eu sei
comemos a lucidez do asfalto
mudámos de morada sempre que foi preciso recomeçar
vivíamos como nómadas sem nunca nos habituarmos à cidade
mas nada disto chegou para nos entendermos
o tempo transformou-se num relógio de argila
tudo esqueci dessas derivas
e pelo corpo de nossos desencontros diluíram-se os sonhos
a verdade é que nunca teria conseguido escrever-te
sob o peso da luz do dia
a excessiva claridade amputar-me-ia todo o desejo
cegar-me-ia tentaria cicatrizar as feridas reabertas pela noite
sou frágil planta nocturna e triste
o sol ter-me-ia sido fatal
conduzir-me-ia ao entorpecimento da memória
e eu quero lembrar-me do teu rosto enquanto puder
o pior é que me falta tempo
sinto a manhã cada segundo mais próxima
ameaçadora e cruel
a luz arrastar-me-á para uma espécie de inércia inexplicável
o silêncio será definitivo
o sangue adormece nas veias e o desejo de permanecer
arremessar-me-ia para o esquecimento sem regresso
poderia até projectar um eventual regresso antes de partir
tenho a certeza de que parto para sempre
não haverá regresso nenhum
creio que se tornaria mais fácil escrever-te de longe
na deambulação por algum país cujo nome ainda não me ocorre
num país com sabor a tamarindos rodeados de mar
onde flores mirrassem ao entardecer e devagar
a paixão nascesse durante o sono
um país um pouco maior que este quarto
fingiria escrever-te para te enviar a minha nova morada
poderia assim queimar os dias no desejo de receber noticias
inventaria mesmo desculpas plausíveis
greves dos correios inexistentes terríveis epidemias
catástrofes
e na espera duma carta acabaria por me embebedar
beber muito e esperar
esperar
digo tudo isto mas já não te amo

[…]







al berto
o medo
três cartas da memória das índias

(excerto)
assírio & alvim
1997









my trees [01]







gil t sousa
my trees 01
fotografia
2007




22 de outubro de 2007

os livros / jorge luís borges



JORGE LUÍS BORGES, NOVA ANTOLOGIA PESSOAL




A ESCRITA DE DEUS


O cárcere é profundo e de pedra; a sua forma, a de um hemisfério quase perfeito, embora o chão (que também é de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, facto que agrava de algum modo os sentimentos de opressão e de grandeza. Divide-o um muro interposto. Este, ainda que altíssimo, não atinge a parte superior da abóbada. De um lado estou eu, Tzinacán, mago da pirâmide de Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Rente ao chão, uma longa janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia) abre-se no alto um alçapão e um carcereiro, que os anos vão apagando, maneja uma roldana de ferro e desce-nos, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar.

Perdi a conta dos anos que já estou nas trevas. Eu, que outrora era jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura da minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pederneira abri o peito das vítimas e agora não poderia sem magia, erguer-me do pó.

Na véspera do incêndio da pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos torturaram-me com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, o ídolo do deus, mas este não me abandonou e manteve-me em silêncio no meio dos tormentos. Laceraram-me, feriram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que já não deixarei na minha vida mortal.

Impelido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de algum modo o tempo, quis recordar, na minha sombra, tudo o que sabia. Desperdicei noites inteiras a recordar a ordem e o número de umas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui debelando os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite senti que se aproximava uma lembrança preciosa: antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança: era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica para conjurar esses males. Escreveu de maneira que chegasse às mais afastadas gerações e que não a tocasse o destino. Ninguém sabe em que momento a escreveu nem com que caracteres, porém consta que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que o meu destino de último sacerdote do deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O facto de um cárcere me rodear não me vedava essa esperança, talvez eu já tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e apenas me faltasse entendê-la.

Esta reflexão animou-me e logo me infundiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra há formas antigas, formas incorruptíveis e eternas, qualquer delas poderia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas aplanaram-se e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a configuração dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos perecem. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações dos cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. Talvez no meu rosto estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim da minha busca. Estava nesse afã quando me lembrei que o jaguar era um dos atributos do deus.

Então a minha alma encheu-se de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei o meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se engendrariam interminavelmente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, causando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar e nessa proximidade percebi uma configuração da minha meditação e um secreto favor.

Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada concedia-me um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que manchavam o pelame amarelo. Algumas incluíam pontos, outras formavam riscas transversais na parte inferior das pernas, outras, anulares, repetiam-se. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham margens rubras.

Nada direi dos cansaços do meu trabalho. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava inquietou-me menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que nas linguagens humanas não há ainda proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o engendraram, os cervos que devorou, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda a palavra enunciaria essa infinita concatenação de factos, e não de um modo implícito, mas sim explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfema. Um deus, reflecti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhuma voz por ele articulada pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa voz, que equivale a uma linguagem e a quanto pode compreender uma linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.

Um dia ou uma noite — entre os meus dias e as minhas noites, que diferença existe? — sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente, e sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir e sonhei que os dois grãos de areia eram três. Foram assim multiplicando-se até encher a cela e eu morria sob esse hemisfério de areia. Compreendi que estava a sonhar e com um grande esforço, despertei. O despertar foi inútil, a inumerável areia sufocava-me. Alguém me disse: Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até ao infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás de percorrer é interminável e morrerás antes de teres despertado realmente.

Senti-me perdido. A areia despedaçava-me a boca, porém gritei: Nem uma areia sonhada me pode matar nem há sonhos que estejam dentro de sonhos. Um resplendor despertou-me. Na treva superior peneirava-se um círculo de luz. Vi o rosto e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

Um homem confunde-se, gradualmente, com a forma do seu destino. Um homem é, por extensão, as suas circunstâncias. Mais do que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote de deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão, como a minha casa. Abençoei a sua humidade, abençoei o seu tigre, abençoei a diminuta entrada de luz, abençoei o meu velho corpo dorido, abençoei a treva e a pedra.

Aconteceu então o que não posso esquecer nem comunicar: a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete os seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante dos meus olhos, nem atrás, nem aos lados, mas em todas as partes, simultaneamente. Essa Roda era feita de água, mas também de fogo, e era (ainda que se visse o limite) infinita. Formavam-na, entrelaçadas, todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era uma das fibras dessa trama total, e Pedro Alvarado, que me torturou, era Outra. Aí estavam as causas e os efeitos, e bastava-me ver essa Roda para entender tudo, infinitamente. Oh ventura de entender, maior que a de imaginar ou que a de sentir! Vi o universo e vi íntimos desígnios do universo. Vi as origens que o Livro do Comum relata. Vi as montanhas que surgiram da água, vi os primeiros homens de cajado, vi as domas que se voltaram contra os homens, vi cães que lhes destroçaram os rostos. Vi o deus sem rosto que há atrás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma única felicidade e, tudo percebendo, logrei também entender a escrita do tigre.

É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e bastaria dizê-las em voz alta para ser todo-poderoso. Bastar-me –ia dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse na minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destroçasse Alvarado, para afundar a sagrada faca em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu Tzinacán, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque já não me lembro de Tzinacán.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo, não pode pensar num homem, nas suas vulgares fortunas ou desditas, ainda que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele Outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não revelo a fórmula, por isso deixo que me esqueçam os dias, deitado na escuridão.

A Ema Risso Platero






jorge luís borges
nova antologia pessoal
trad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983




8 de outubro de 2007

quase requiem






caminhamos na noite
como verbos sujos numa carta de amor

vencidos pelo tempo e pela luz
perdemos as sombras
e temos no rosto
a condenação das estátuas
a mudez dos seus lábios
o desespero fatal dos seus olhos secos
pela eternidade

que negros navios nos carregaram futuros, destinos
e nos largaram nestas ilhas malditas
nestas geografias podres
a que nunca pertenceremos?

que estranho sangue fizemos correr
nas nossas veias já mortas
ruelas de ruínas queimadas
escombros de palácios onde a alma nos morava
donde foi expulsa toda a esperança
e o sonho se esfumou como incenso no deserto

que brilhantes fantasmas nos tornámos
rindo dos espelhos e das águas
onde nos deixaram as raízes
que nos seguravam da loucura

estamos tão sós, tão podres de agonia
e medo!

o corpo lacrado à dor, as rugas escondidas do tempo
o amor apedrejado às coisas e aos outros
como uma moeda atirada da torre de tortura
duma cidade comida pela peste

que fizemos ao tempo de morrer
com uma mão na nossa mão?







25 de setembro de 2007

os livros / irene lisboa


IRENE LISBOA, SOLIDÃO II



IDEIAS sobre o amor?

Sim, têm-se. E têm-se, sobretudo, horas violentas de amor, certezas e sonhos loucos.

Certezas! Mas que absurdo... As certezas são apenas nossas; pobres cálculos instantâneos e definitivos. Deliberações... A vida de súbito, refeita, alterada, liquidada, iniciada sem uma base, mas em outro estilo que não o velho...

O amor, é uma coisa fugaz e maravilhosa; dá-nos ao espírito uma tal capacidade de reforma, de criação de uma estrutura própria! Enfraquece-nos e subtiliza-nos, força-nos a infinitas abdicações, que não são propriamente negações, que são tentativas ardentes e inconscientes de recreação psíquica, de conformação com o tipo moral novo que se nos depara e nos agita. E uma espécie de corrida, de saída de um eu pessoal para um eu alheio — que afinal só desejamos captar, cativar, conquistar, render — rendendo-nos nós a ele...

Muda-se de terra, de meio, de época, e temos casualmente uma hora, uma dessas doces mas tão incertas tão avassaladoras e inseguras horas de ânsia amorosa... Hora infinitamente discreta e delicada, quase pueril, de favor e de mimo, mas dominante, enterrada no cerne da nossa sensibilidade, lavrando-o. Hora arrebatadora, imensa e breve. Sempre desiludida!

Porém o amor e o desejo nunca o são de um só; a partilha os assedia, misteriosamente fustiga. Toda a poderosa torça imanente da vida no-lo prova ou revela. Mil possibilidades compreensivas, receptivas, comunicativas nos atravessam, se nos oferecem. Sem logros, sem enganos... Há recíprocos acordos rápidos, inexprimíveis e inutilmente aclarados, impositivos. E porque é que os frustramos? Que traição nos fazemos!

Quando ela queria dizer sim, diz e/e não. É inevitável... Ou então, o contrário.

Perdem-se os passos juntos dados, que tiveram, sensível ou insensivelmente, uma harmonia tão subtil e cariciosa, a pressão doce e casual das mãos já esquecida, os olhares comuns, alienados. Os seres que se aproximam, retraem-se. Porquê? Que louco jogo é este da vida?

É perversa a natureza, ou a nossa realidade nos conduz fatalmente à negação?

O sol e a chuva, a paisagem da terra, que é a acidentalidade dos que por ela passam sem demora, as estrelas e o escuro da noite, o movimento alheio, o povo, o inconsciente imenso que nos aperta e nos abandona, que nos mantém acompanhados e sós, influídos e desinteressados, para quem e a favor de quê trabalharam? Demos-lhe um lugar enorme, uma aceitação fervorosa e poética, desdobrámo-los momentânea e quase absolutamente no nosso caloroso espírito... E eles que nos devolvem? Nada. Anulam-se, repelem-nos. Continuam existindo mas já vazios, aniquilados.

É isto, parece que é sempre isto, o amor. Uma labareda e um pozinho de cinza. Ímpeto e incerteza, calor e frio. Realizado, ou não realizado, é uma flor brilhante, que ninguém colhe, que ninguém guarda, de que todos conhecem o nome, apenas o nome...

Mais uma palavra dita, uma afirmação? Seriam inúteis. Amor concluído, amor iniciado têm ambos a mesma realidade: não duram.

Dos dois, homem e mulher, aquele que diz ao outro não, é o mais sábio. E o mais cruel. Tem a previsão, a lucidez fria dos permanentes destinos. O que esperou, o que sonhou, é o eterno tonto, sem domínio e deslumbrado, renascendo sempre para a ilusão.




irene lisboa
solidão II
portugália editora
1979





18 de setembro de 2007

a poesia / eduardo bettencourt pinto


solstício





a Eugénio Lisboa


Nunca se regressa do tempo mas dos espelhos,
lagos onde te debruças e espreitas o silêncio
do teu rosto.
Cada manhã lembram-te, como um severo juiz,
o órfão menino que foste.
No fundo dos olhos perderam-se as garças,
a clara e pueril sombra das olaias,
setembro cantava ainda sobre os ombros
ou entre as primeiras chuvas da tua vida.
Foi um instante: o lume que te levou
à alegria eterna de um momento
foi-se apagando nas mãos, oiro e pedra
da alma.
Até a paciência se tornou numa guitarra calada.
Mas não percas nisso o canto.
Daqui a pouco te levantarás da melancolia,
essa cama de equívocos onde o corpo se deita
cansado e que acaba por sequestrar o coração.
Enquanto os presidiários do fatalismo se encerram
nos labirintos da solidão, segue por outro caminho
em direcção ao sul, à casa e à claridade
onde os teus passos nasceram
em corrida para o rio.











eduardo bettencourt pinto
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
colecção diáspora
2001



13 de setembro de 2007

folhas





















… mas chegam pela água
as folhas
e ele
tão só e tão forte
guarda nas mãos
(talvez nas mãos)
o mistério lento das cores
tem nos olhos
a inquietação anunciada
das árvores
escreve estações
no ser que deserta
as ruas
e passa
ainda passa

como se fosse
à vida








6 de setembro de 2007

a poesia / herberto helder







Contou que caminhava pela praia, nu, correndo.

A areia, o sol, o mar
e a profundidade extenuante do céu embriagavam-no.
Tinha extrema consciência da sua nudez,
e isso também o embriagava.

Ia com um projecto, ou uma missão, estava carregado disso,
mas tratava-se de uma coisa inominável.
Na praia havia gente, gente — parece
— com aquela disponibilidade sem expectativa de gente na praia.

Estavam em fato de banho, ociosos e alheios,
e quando ele passou pelo meio dessa gente,
a nudez que tinha ainda o embriagou mais.
Depois encontrou três degraus de pedra, e subiu-os.
Continuou a correr, mas — segundo contou — o céu,
a água e a areia, agora perdidos, haviam deixado nele um espaço vazio
onde a ideia de missão se pôs a crescer,
de modo que ele se encontrava como que louco da pressa
e densidade da missão.
Corria por um labirinto de pedra negra, e nos corredores estreitos
havia casas baixas, também de pedra, sem telhado
e sem portas e janelas.

Eram cubos negros abertos em cima
e com buracos rectangulares a diversos níveis.
Correndo pelos labirintos, cheio da sua pressa
e com a espessa ansiedade daquela mensagem tão obscura,
viu de súbito que tinha dois longos pénis brancos,
delgados e longos como duas serpentes,
e que se contorciam e enroscavam um no outro.

Não sentiu medo, sequer espanto,
pois imaginava que isso também fazia parte da missão.
Mas quando avistou uma mulher
que vinha em sentido contrário ao dele,
procurou tapar com as mãos aqueles pénis-serpentes
nascidos da mesma sombria raiz, quando corria pelos labirintos.

As serpentes, no entanto,
escapavam-se por entre os dedos, desciam-lhe pelas pernas,
subiam pelo ventre até ao peito,
avançavam em todas as direcções, com as suas pequenas cabeças cruéis,
sagazes e esfaimadas.

Cheio de terror, parou em frente de uma daquelas casas.

Quando entrou — contou ele —
havia já perdido a sua força e leveza de mensageiro,
e apenas sentia medo.
A casa estava vazia como todas as outras e, como elas,
sem tecto e sem portas e janelas.
Naquele cubo negro e devassado,
onde adivinhava excrementos e restos podres de comida,
através de uma luz sinistra,
pensou que viera de longe,
percorrendo com a sua nudez os caminhos do dia
e estes labirintos tenebrosos,
apenas para se encontrar vazio, cercado pela podridão.

As duas serpentes brancas continuavam a fremir
entre as suas pernas abertas.











herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968.







23 de agosto de 2007

vê, é o mundo!




gostava da janela pela madrugada
quando me puxavas para ti
e me dizias, apontando as luzes e as sombras
sobre os telhados da cidade:

vê, é o mundo!






17 de agosto de 2007

a poesia / antónio manuel azevedo



que mal podem as palavras





1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.

Não é tudo. Imagina
A devastação.



2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.



3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.



4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.



5
Desde que o mês é este
oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja

tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber

mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.



6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.

À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.



7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.



8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.



9)
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.

Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.

Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.



10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.

Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.







antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990







francis picabia (1879-1953)










Francis Picabia
midi (promenade des anglais)
oil, feathers, macaroni and leather on canvas
ca 1923-26




5 de agosto de 2007

amarração






todos os dias te amarro numa palavra
e quando me olho na esgotante loucura dos dias

leio-te
o infinito passo
que me transporta aos desertos maiores

mas
fico tão pobre
de já nem me chegar o infinito dos verbos!…









22 de julho de 2007

a poesia / luís miguel nava




abismos






Entre estes meus amigos através
de cujos corações arde o horizonte e a ponte
da qual o seu sorriso era um dos arcos
abriram-se os abismos.











luis miguel nava
poesia completa
1979-1994
rebentação
publicações dom quixote
2002








20 de julho de 2007

os livros / philippe soupault




PHILIPPE SOUPAULT, MAR VERMELHO





P.S. em 1982

O Mar Vermelho é um íman que atraiu e reteve os homens que iriam agitar os alicerces do mundo.

Não é que nos obstinemos a determinar o segredo das partidas de Rimbaud nem descobrir necessariamente o seu esquecimento da poesia, mas, mais simples do que isso, saber dos porquês do Mar Vermelho e suas margens fascinarem o viajante infatigável, nunca satisfeito, sempre à procura de novas luzes e novos mistérios.

Foi nessas margens que eu segui os itinerários traçados pelo futuro “negociante”, itinerários que ele finalmente havia preferido — ele que falava em regressar a França para se casar e fazer um filho que seria “engenheiro”.

Tendo procurado as pistas de Rimbaud em Londres e em Chipre, fui a Aden, vi a Arábia, Harar, a Etiópia. Em 1951. Ao explorar o Mar Vermelho, vi-me metamorfoseado. Não foi tanto a descoberta de um universo diferente; nem a solidão; mas uma metempsicose. Je est un autre. O homem que eu acreditava ser já não se parecia comigo. Experiência dolorosa mas irreversível. Inútil lutar contra esta ruptura. O olvido.

A sombra de Rimbaud, imperceptível, era impossível não se ficar obcecado por ela. Sombras. O que o vidente não podia conhecer nem mesmo imaginar.

E no entanto...

Os que encontrei eram também eles vítimas do esquecimento. Mesmo aquele milionário, senhor Besse que, alguns anos depois da partida do negociante havia feito fortuna ao retomar por sua conta os projectos que o ardenense teve de abandonar. Mesmo aqueles fantasmas ou aqueles destroços que erravam de Djibuti a Aden sem espírito de regresso.

A última viagem, a viagem da agonia do carregador de luíses de ouro.

Saberia ele que ia morrer?

Paris, 1982





philippe soupault
mar vermelho
trad. célia henriques e vítor silva tavares
& etc
2000




13 de julho de 2007

memória






e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas










7 de julho de 2007

luto





atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração






3 de julho de 2007

a poesia / rené char







Bruscamente recordas-te de que tens um rosto. Os traços que formavam o seu relevo não eram todos traços de desgosto, antigamente. Em direcção a essa paisagem múltipla erguiam-se seres dotados de bondade. Nela, o cansaço não seduzia apenas naufrágios. Nela respirava a solidão dos amantes. Olha. O teu espelho transformou-se em fogo. Insensivelmente, recuperas a consciência da tua idade (que saltara do calendário), desse acréscimo de existência cujos esforços construirão uma ponte. Recua no interior do espelho. Se não consumires a sua austeridade, pelo menos a sua fertilidade não se esgotou.










rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000







1 de julho de 2007

a poesia / brian patten


é sempre a mesma imagem





é sempre a mesma imagem;
a tua, saindo nua dos rios do Outono,
o corpo envolto em vapor, coberto de chuva,
gotas azuis e cinzentas desprendem-se de ti,
quando falas
folhas caem e desintegram-se.

é sempre a imagem dos teus seios,
cheio da violência de plantas marinhas
que vibram quando tocadas; peixes
acasalam por debaixo de ti; o teu corpo azul, a tua
sombra seguindo-o,
ambos como espectros vistos de esplanadas distantes
por um público assustado.

a mesma imagem,
mas agora um lago cercado por fetos,
e, meio visíveis por entre a neblina,
mil amantes seguindo-te nus
sem deixar rasto nas esquinas da madrugada.







brian patten
leituras poemas do inglês
trad. joão ferreira duarte
relógio d'água
1993





25 de junho de 2007

os livros / douglas coupland


DOUGLAS COUPLAND, A VIDA DEPOIS DE DEUS




A seguir fiquei mesmo cheio de solidão e tão farto das coisas más da minha vida e do mundo que disse para comigo: «Meu Deus, faz de mim um pássaro… É tudo o que sempre desejei… Um pássaro branco e ágil livre de vergonha, de maldade e de medo da solidão, e dá-me outros pássaros brancos com quem voar, dá-me um céu tão grande e tão vasto que, se eu nunca quiser descer para a terra, não tenha que o fazer.»

Mas Deus, em vez disso, deu-me estas palavras, e eu digo-as aqui.








douglas coupland
a vida depois de deus
trad. telma costa
teorema
1994

22 de junho de 2007

a poesia / miguel esteves cardoso



Rara





Ouço-te
a ser rara
a estrela

no espaço

onde algo
se desprende
e quase tudo
se desmonta

Ouço-te
a virar
os paus

a comer
vestígios
importantes

e estás
em apuros

com as noites

estás em
ponta fina
de margens
dadas

os braços
pelo pó

e os olhos
por força maior

Ouço-te
ao aparecer
da vista

e do tacto
e estás incólume

de mim

das causas
disso

dos porquês
daquilo









miguel esteves cardoso
sema
publicação sazonal de artes e letras
ano I, n.º 2,
verão 1979





20 de junho de 2007

san giorggio maggiore







é neste muito silêncio que se me repete o tempo

no horizonte impossível
ou no ângulo forte desta sombra sagrada
rebentam sonhos
crepitam anseios de viagem
pela ideia antiga de universo
e de humanidade

estes pássaros
dançam só para mim
estou só
neste céu com que me cobres

e são tão
frescas as melodias da água

que por ti me hei-de um dia
pôr a morrer





(veneza, agosto de 2001)









13 de junho de 2007

a poesia / jean daive




ÉDEN



Uma mulher a medir.

Uma mulher de braços estendidos
transfere comprimentos ou
proporções.

Ela calcula
o sono desse homem que nunca
mais dormirá.

É preciso que se saiba
que tudo começa
pela ampliação
fotográfica
de uma vírgula.



*



Isso
tece um som,

Um afrouxar
repentino,
esse líquido ladeando uma luz
para uma fotografia
em que o cinzento predomina,

Aquilo que vês é composto
de um homem e uma mulher
justamente.

Cadeirão. Sentado a um canto.
Estás sozinho na sala, Fumas
talvez, de queixo nos joelhos.

Entras
outra vez só
num
som da rua.

Vês sombras azuis
correndo
e no visor
a carne de comer.



*



Palavras penduradas
em que o cinzento predomina.

A gasolina pintada a cor-de-rosa
em redor de uma casa
aflui.

O jardim arde.

Uma pedra cai
e tu não és mais pesado.

Perfila-se um fim
como depois da história de uma paixão.

Mas evita-se um sentido cinético do mundo.

E a necessidade reencontrada
do isolamento.

Também
o teu cadeirão
se não articula
com o que o autor quer dizer?

Sorris. Apreendes uma separação.



*



Como é que se antecipa
o gaguejar,
um sistema de coordenadas?

O mundo de um filme
de longuíssima duração
não te subtrai.

Porque
este não é o mundo
que entra nos teus olhos.

É o fim do dia. É o fim das legendas.

A escuridão não tem pó
como a mulher.

Lateralmente
o fumo ondula
semelhante
a uma pulsação.

Mais tarde.

Um cansaço no quarto e na
cama o tempo é não gerado.



(de Narration d’équilibre 6, 7 8, 9)









jean daive
sud-express
poesia francesa de hoje
tradução pedro tamen
relógio d´água
1993








10 de junho de 2007

no lado maior do que não há





ir
no redondo da vela mais branca

navegar
o silêncio dos clarões

passar
por nenhuma ponte

morrer
no lado maior do que não há











9 de junho de 2007

onde mora o coração



ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração







6 de junho de 2007

os livros / baudelaire


BAUDELAIRE, A FANFARLO





Entre nós, não se dá grande valor à arte da dança, diga-se de passagem. Todos os grandes povos e, antes de mais, os da antiguidade, da Índia ou da Arábia, a cultivaram a par da poesia. Para certas sociedades pagãs de outrora, a dança está tanto acima da música como o visível e as coisas criadas estão acima do invisível e do informe. Só aqueles a quem a música consegue comunicar impressões semelhantes às da pintura me poderão compreender. A dança é capaz de revelar tudo o que a música contém de misterioso e tem ainda o mérito de ser humana e tangível. A dança é a poesia dos braços e das pernas, é a matéria, graciosa e terrível, animada e embelezada pelo movimento. Terpsicore é uma Musa do Sul; imagino-a muito morena, a dançar pelas searas douradas; os seus movimentos, impregnados de uma cadência precisa, constituem também sublime motivo para a estatuária. Mas a católica Fanfarlo, não contente em rivalizar com Terpsicore, chamava ainda a si toda a arte das divindades mais modernas. Nessas zonas de bruma, confundem-se, entre si, formas de fadas e de ondinas menos indolentes e vaporosas. A Fanfarlo foi ao mesmo tempo a personagem de um capricho de Shakespeare e a de uma comédia bufa à italiana.
(…)










charles baudelaire
a fanfarlo
trad. antónio guerreiro e fernando guerreiro
hiena editora
1988




2 de junho de 2007

seguíamos a água




seguíamos a água
porque a secura nos cercava
como um animal
quase louco

do alto de pedras antigas
avistávamos cidades
para onde partíamos
a todas as horas

metrópoles
de ventos eufóricos
que nos sopravam
a humanidade inteira

na forma
do grito e do olhar
e no incêndio infinito
do sangue

e eram tão poderosas
as palavras que sabíamos
tão nobres os silêncios
por onde elas espelhavam

e tão grande
era tão grande o coração
que as ouvia,
que as guardava

num secreto
para sempre!







31 de maio de 2007

a poesia / maria do rosário pedreira





Chegam cedo de mais, quando ainda não podem escolher
nem decidir. Vêm carregados de espectros, de memórias
e de feridas que não souberam sarar; mas trazem a confiança
da cura nas palavras. Convencem-se de que amam outra vez


quando nos tocam os pequenos lugares, esquecendo-se do rumo
incerto dos seus passos nas estradas tortuosas que os
trouxeram. Abafam-se num cobertor de mentiras sem saber e
falam de injustiça quando tentamos chamá-los à verdade.


Dormem de vez em quando nas nossas camas e protegemo-los
da dor como aos filhos que não iremos ter nunca
porque não nos resignamos a perdê-los. E, um dia, partem, vão


culpados, não chegam a explicar o que os arrasta. Escrevem
cartas mais tarde – uma ou duas palavras para se aliviarem dessa espada.
E nós ficamos, eternamente, sem vergonha, à espera que regressem.









maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002







30 de maio de 2007

passagem





e se nas mãos fechadas
as grandes portas se abrissem

e passasses tu
como este silêncio passa!








26 de maio de 2007

os livros / fernando pessoa


FERNANDO PESSOA, LIVRO DO DESASSOSSEGO








A morte do Príncipe








Porque não será tudo uma verdade inteiramente diferente, sem deuses, nem homens, nem razões? Porque não será tudo qualquer coisa que não podemos sequer conceber que não concebemos – um mistério de outro mundo inteiramente? Porque não seremos nós – homens, deuses, e mundo – sonhos que alguém sonha, pensamentos que alguém pensa, postos fora sempre do que existe? E porque não será esse alguém que sonha ou pensa alguém que nem sonha nem pensa, súbdito ele-mesmo do abismo e da ficção? Porque não será tudo outra-coisa, e coisa nenhuma, e o que não é a única coisa que existe? Em que parte estou eu que vejo isto como coisa que pode ser? Em que ponte passo que por baixo de mim, que estou tão alto, estão as luzes de todas as cidades do mundo e do outro mundo, e as nuvens das verdades desfeitas que pairam acima e elas todas buscam, como se buscassem o que se pode cingir?

Tenho febre sem sono, e estou vendo sem saber o que vejo. Há grandes planícies tudo à roda, e rios ao longe, e montanhas… Mas ao mesmo tempo não há nada disto, e estou com o princípio dos deuses e com um grande horror de partir ou de ficar, e de onde estar e de o que ser. E também este quarto onde te ouço olhar-me é uma coisa que conheço e como que vejo; e todas estas coisas estão juntas, e estão separadas, e nenhuma delas é o que é outra coisa que estou a ver se vejo.

Para que me deram um reino que ter se não terei melhor reino que esta hora em que estou entre o que não fui e o que não serei?








fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares vol. II
recolha e transcrição dos textos:
maria aliete galhoz e teresa sobral cunha
ática
1982




24 de maio de 2007

19 de maio de 2007

os livros / italo calvino





ITALO CALVINO, AS CIDADES INVISíVEIS




As cidades ocultas. 2.


Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: — Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».






italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema

1999

14 de maio de 2007

manifesto





todo o olhar será resoluto
e cercará liquidamente todas as formas

todos as coisas
todas os seres

não parará de se cumprir
até ao ínfimo estremecer da cor mais rara

e ignorará sempre
a lei do espaço e do tempo

arrasará de irreal
a superfície dos volumes mais intensos

todas as arestas do mundo
serão extintas

e há-de nascer
uma nova geometria









10 de maio de 2007

nenhuma escada




todos os relógios
estavam do teu lado


eu só tinha a minha torre
de espelhos
só tinha a noite
e o silêncio

e nenhuma escada










7 de maio de 2007

a poesia / özdemir ince




o preço





Atravesso, majestosamente, o verão em voo planado,
as crianças olham para as minhas asas
e sentem inveja,
elas não podem adivinhar
o preço deste aniquilamento.

Quantos invernos, massacres, misérias
conheci!
Quantas vezes a minha fronte derreteu ao tocar
a terra!
Às portas das cidades, quantas vezes me deixaram
sozinho, em frente a um espelho!








özdemir ince
poemas
tradução de egito gonçalves





5 de maio de 2007

equador




mais tarde
sentiria a dor da terra seca

havia de ouvir o cinzel do tempo
e experimentar o arrepio
da fusão lenta dos espelhos

que estranho fogo nos queima
quando da solidão suprema
se ergue o chão de todas as coisas

e exangues de saudade e medo
aí deixamos o amor
todo o amor
com a violenta ternura
do que é eterno

quanto mais se pode dar
a quem um dia nos cruzou o coração
como um equador
de vida e paixão?






1 de maio de 2007

a poesia / ana paula inácio



queria que me acompanhasses





queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos







ana paula inácio
poetas sem qualidades
averno
2002







27 de abril de 2007

os livros / albert camus



ALBERT CAMUS, CADERNOS III




*

«Desejava duas coisas, a primeira era a possessão absoluta. A segunda era a lembrança absoluta que ele lhe queria deixar. Os homens sabem tão bem que o amor está votado à morte que trabalham pela memória desse amor durante todo o tempo que vivem. Ele queria deixar-lhe uma grande ideia de si mesmo a fim de que o seu amor fosse grande, definitivamente. Sabia, porém, agora, que ele próprio não era grande, que ela, mais cedo ou mais tarde, o viria a saber um dia, e que, cm vez da recordação absoluta, seria para ele pelo menos a morte absoluta. A vitória, a única vitória seria reconhecer que o amor pode ser grande mesmo quando o amante o não é. Mas ele ainda não estava preparado para essa terrível modéstia.»

«Levava consigo, gravada a ferro em brasa, a recordação desse rosto roído pela dor... Ë nesta época, aproximadamente, que ele perde a estima de si mesmo que até aí sempre o havia amparado... Inferior ao amor, ela tinha razão.»

«Pode-se amar estando a ferros, através das paredes de pedra espessa de vários metros, etc... Mas se uma parte do coração, por mais pequena que seja, estiver submetida ao dever, o amor verdadeiro torna-se impossível.»

«Ele imaginava um futuro de solidão e de sofrimento. E encontrava um prazer difícil nessas imaginações. Mas era por supor o sofrimento nobre e harmonioso. E na realidade imaginava assim um futuro sem sofrimento. Desde o instante em que a dor surgia, pelo contrário, já não havia vida.»

«Ele dizia-lhe que o amor dos homens é assim, uma vontade, não uma graça, e que ele próprio tinha de ser conquistado. Ele jurava-lhe que isso não era o amor.»

«Perdera tudo, até a solidão.»

«Ele gritava-lhe que isso era a morte para ele, mas este grito não a atingia. Ë que, no cimo da sua exigência, achava natural que ele morresse, pois que falhara.

«Tudo deve ser perdoado, e sobretudo o facto de se existir. A existência acaba sempre por ser uma má acção.»

«Foi nesse dia que a perdi. A desgraça só mais tarde pareceu dar-se. Mas ele sabia que fora nesse dia. Para a conservar deveria nunca ter falhado. O rigor dela era de tal ordem que ele não podia cometer um único erro, dar mostras de uma só fraqueza. De qualquer outro teria ela admitido isso, tinha-o admitido e admiti-lo-ia. Não dele. São os privilégios do amor.»

«Há uma honra no amor. Perdida ela, o amor nada é.»


*








albert camus
cadernos III
(caderno nr. 5 1948-1951)
tradução antónio ramos rosa
livros do Brasil
1966








15 de abril de 2007

a poesia / marguerite yourcenar





e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.







marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995








e tu, vais-te embora? vais-te embora?...








6 de abril de 2007

a poesia / sophia de mello breyner andresen






Através do teu coração
[ passou um barco
Que não pára de seguir sem
[ ti o seu caminho








sophia de mello breyner andresen
navegações
caminho
1996

5 de abril de 2007

os livros / jill paton walsh



JILL PATON WALSH, O CONHECIMENTO DOS ANJOS


(…)

O problema era que Palinor não podia valer-se do argumento a que qualquer sarraceno ou qualquer outro espírito exótico podia recorrer — que pertencia a outra religião e estava fora do âmbito da Igreja; e não porque o que ele negava não era determinado aspecto da doutrina da Igreja, mas algo que todos os seres humanos sabiam, ou por conhecimento inato ou graças à razão natural. Muito simplesmente, ele não podia negar Deus. Era urna blasfémia impudente e terrível, pior do que qualquer heresia sobre a natureza de Cristo, ou a presciência de Deus, ou o livre arbítrio, ou qualquer coisa do género. Qual a desculpa concebível para que um homem como aquele incorresse em tal erro? Não se lhe aplicava de modo algum a exculpação dos estúpidos; talvez tivesse sido desencaminhado ou mal ensinado.
Mas Beneditx podia evidentemente convertê-lo através do raciocínio. Aquilo que devia saber desde sempre, desde que nascera, passaria a ser apenas urna questão de interesse histórico ao ser ultrapassada pela clarividência que Beneditx lhe transmitiria. Não conseguia acreditar que fosse impossível convencer aquele homem afável e inteligente que tinha à sua frente. Beneditx tinha fé no poder da razão. Preparou-se para expor as provas que S. Tomás considerava válidas; eram cinco, se bem que uma seria certamente suficiente. E, tendo-se preparado, foi com alegria que enfrentou o seu segundo encontro com Palinor.
Os dois homens iam passeando calmamente por um caminho verdejante e sombrio do jardim, com um riacho a cantar-lhes alegremente aos pés.
— Em primeiro lugar, na natureza nada se move, a não ser que seja movido por qualquer outra coisa — foram as palavras com que Beneditx abriu a discussão. Um pau que é brandido no ar é movido pelo homem que está a segurá-lo. Mas este movente tem, por sua vez, de ser movido por qualquer outra coisa, e essa outra coisa por uma outra. Esta cadeia não pode prolongar-se indefinidamente, recuando até ao infinito, de contrário chegar-se-ia a um ponto em que não existiria um primeiro movente nem, consequentemente, qualquer outro. Por isso, é necessário chegar a um primeiro movente, cujo movimento não foi iniciado por outro, e que toda a gente compreende que é Deus.
— Tenho de responder a isso? — perguntou Palinor.
— Espera. Vou apresentar-te três fundamentos sólidos da fé e verás se não te convencem.
— Estou nas tuas mãos, amigo — disse Palinor.
Falava num tom grave, mas com um certo toque de afeição, quase de divertimento. Sentia o prazer que um adulto instruído sente na presença de uma criança maravilhosa, de espírito perspicaz e inocente. Aliás, ninguém podia duvidar da avidez implícita nos esforços de Beneditx para o persuadir nem deixar de ver quão bem intencionadas e benignas eram as suas tentativas. Palinor via obviamente com mais clareza do que Beneditx a dificuldade da tarefa que este empreendera; mas, como acontece com uma criança de ambições românticas, era mais amável da parte dele não ser demasiado aniquilador.
— Em segundo lugar — prosseguiu Beneditx —, no mundo sensível que nos rodeia apercebemo-nos de que há elos de causalidade. Uma coisa causa outra e é, por sua vez, o efeito de uma outra causa. Não há nada que possa ser a sua própria causa, pois, para isso, teria de ser anterior a si mesma, o que é impossível. Mas esse elo de causalidade não pode recuar até ao infinito, senão não haveria uma primeira causa e, logo, um primeiro efeito, porquanto afastar a causa implica afastar o efeito. Por isso, a percepção pelos nossos sentidos de causas e efeitos obriga-nos a aceitar uma causa sem causa, uma primeira causa eficiente, a que toda a gente chama Deus. Em terceiro lugar, há coisas na natureza que podem existir ou não existir, pois são criadas e consumidas, nascem e morrem. É impossível que essas coisas tenham existido sempre, pois tudo aquilo que a certa altura pode deixar de existir tem necessariamente de não ter existido em determinado momento. Por isso, se tudo pudesse deixar de existir, teria de haver um momento em que podia não ter existido nada. Se isto fosse verdade, ainda hoje não existiria nada, porque aquilo que não existe surge a partir de algo que já existe. Ou seja, se num determinado momento não existisse nada, nada poderia ter começado a existir e nada existiria no momento presente, o que é um absurdo. Por isso, tudo aquilo que existe não é meramente possível; tem de existir algo cuja existência é necessária. Mas a necessidade de uma coisa necessária é causada por outra coisa qualquer e não podemos ir até ao infinito numa cadeia de necessidades, como já vimos em relação aos moventes e às causalidades, pelo que não podemos deixar de postular a existência de um ser, cuja necessidade adveio de si próprio, e não só não resulta de um outro ser como é a causa da necessidade de outros seres. Para todos os homens este ser é Deus.
Houve um silêncio, enquanto Palinor meditava sobre estas palavras. Chegaram ao fim do caminho que se abria sobre o vale, permitindo uma visão abrangente e suavemente descendente dos laranjais e do verde prateado dos olivais que cobriam o vale, que se tornava ora mais claro, ora mais escuro, como um lago exposto à brisa da manhã.
— Esses argumentos vão todos dar ao mesmo — disse Palinor. — Tudo aquilo que se move é movido por outra coisa; por isso, há algo que faz mover tudo aquilo que se move. Todos os efeitos têm uma causa; por isso, há uma causa donde resultam todos os efeitos. Continuando, todas as estradas vão dar a um lado qualquer, por isso há um lado qualquer aonde todas as estradas vão dar; todos os rios têm uma nascente, por isso há urna nascente onde qualquer rio começa; todos os filhos têm uma mãe, por isso alguém tem de ser a mãe de alguém; todas os instrumentos têm um fim, por isso há um fim a que cada instrumento se destina... Tenho de continuar?
— Espera — pediu Beneditx. — Estás a falar como alguém que, estando diante de urna árvore e vendo que um ramo nasce de um braço e muitos ramos de muitos braços, nega a existência do tronco da árvore. Se seguires a multiplicidade cada vez mais para trás, acabarás por chegar ao tronco único.
— Mas, se continuares, chegarás à multiplicidade das raízes. E, se te afastares, verás que a árvore é apenas uma entre milhares de outras que existem na floresta. O problema, Beneditx, é que afirmas que as coisas que existem no mundo à nossa volta têm de ter uma explicação e apresentas Deus como a explicação. Mas, para mim, o mundo que está à nossa volta não me suscita quaisquer dúvidas nem necessita de qualquer explicação. Para mim, tudo aquilo que existe aos nossos olhos, ao nosso tacto, ao nosso paladar e ao nosso olfacto, é possível, e o que é possível não é impossível. Daí que eu não veja a necessidade de Deus.
— Mas hás-de ver — disse Beneditx, num assomo de paixão. Apresentar-te-ei as provas do grau e do desígnio. Hás-de ver!







jill paton walsh
o conhecimento dos anjos
trad. maria do carmo figueira
gradiva
1996



26 de março de 2007

as três comadres



(sobre um quadro da alice loureiro)




no fim dum caminho antigo,
por entre as pedras e o céu,
há vozes que anunciam um outro tempo.


um tempo escondido no segredo das mentes,
como as almas se escondem
nas pedras das cidades que pecaram.

é a maldade simples da terra,
a intriga das ervas,
a sentença do que vive.

não há aqui eternidade,
nem morte,
e só os olhos levam o que lá diz;
em molhos de cor a lembrar cereais maduros,

mel guardado como um tesouro
para um amanhã esperado.
tudo acaba ali,

no precipício que divide o real
e anuncia o infinito com uma força nua de sinais.
e é nesse acabar

que uma outra realidade ganha forma,
tranquila como as coisas eternas,
enigmática como as coisas que, não sendo vivas,

obedecem a um outro sangue,
a um pulsar de que nunca saberemos o nome....






gil t. sousa





22 de março de 2007

a poesia / herberto helder




Vem das estampas de ouro, o sono encurva-lhe os cabelos,
fica branca de andar encostada à noite,
e respira, respira,

sim respira,
como uma colina tão nua
que os pulmões fossem uma renda de prata atormentada,
ou água cruel aberta

por ti,
tubarão crepitando pelo Índico,
entre geladas barragens de sal em rama,
com uma garra no ventre,
uma síncope,
um mergulho como uma flor

que se não chama negra,
nem cujo nome pode ser dito assim:
aquilo é a paixão,

mas que,
tremendo,
se pode pronunciar como beleza este espaço,
crime esta paisagem,
ou então:
a lua dança

como um vestido bêbedo
— ata lenços de um branco que desfaleça nos dedos,
e atira fora esse ramo,
e aí verás como é que eu me movo:

sim,
eu respiro,
estou direita,
deixa-me passar
— aqui vai uma ilha de pés descalços,
aqui é um espelho caminhando como a voz
por onde entram e saem
imagens cambaleantes,

e tu chamas-te então:
como eu vi o tempo,
era uma maneira cega de haver junquilhos
que giravam até se arrancarem dos terrenos nocturnos

e viverem como crianças ondulantes,
esquecidas do seu texto,
num exílio de espanto e beleza brusca,
de fazer pensar,
súbito,
na morte prometida a todas as coisas

que se aproximam demasiado do nosso amor,
e é então que tu dizes:
há casas desabitadas,
eu estou nessas casas

que tremem quando movo as mãos,
a minha cabeleira palpita:
é o sangue que sobe do coração apavorado
e se faz dócil,
quando o pente arrefece um a um os cabelos,

e então o meu nome é:
pimenta,
areia sentada,
abertura da luz para onde saltam laranjas que pulsam,

ah, deixa-me passar,
digo-te baixo como hoje me chamo
e como nunca mais me chamarei:
loucura,

loucura unida à rítmica matéria das coisas,
e se abrires o teu sono,
dessa vez única verás o que sou:
uma figura

impelida pela vertigem,
a inclinação do teu próprio conhecimento
sobre a morte iluminada por todos os
lados,

depois terei um só nome:
revelação,
até que os dias arquejantes me sufoquem e,
no terror que te atravessa como água dolorosa,

eu seja a tua ilha a prumo,
onde habitas,
tu próprio uma ilha desabitada,

entre a lua
como uma rosa infrene e os peixes frios
e selvagens.








herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968.







4 de março de 2007

água-forte


1)


as mãos roçam a noite como árvores nuas e tudo o que deixam nas janelas fechadas é um canto de pedra, um canto negro que sobe e desce os telhados de ruas desconhecidas e desertas, que se esconde em corações solitários, como gárgulas de sangue, por onde escorrem vozes, gritos secos e antigos, gritos de medo, gritos de raiva, de homens que sufocaram no tempo, estrangulados de mentira e de lama.

sou tão invisível, hoje! nenhuma ponte me apanha no abismo de acordar.





nenhuma ponte me apanha no abismo de acordar











12 de fevereiro de 2007

os livros / anaïs nin



ANA­ÏS NIN, A CASA DO INCESTO


Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projectar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.

Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.

Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.

Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.

Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.

Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projectada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.







anaïs nin
a casa do incesto
trad. isabel hub faria
assírio & alvim
1993


31 de janeiro de 2007

a poesia / yorgos seferis







A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.






yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993