30 de maio de 2006

falso lugar #037




esse brilho de cidade
que no rasto das estrelas se anuncia

ou o alquímico silêncio de uma duna
cravado
no olhar de um sábio

as papoilas,
os segredos
na lisa viagem do sangue
os mistérios vermelhos
de que se envenenam os rios

as ruidosas veias
que moram nas mãos solitárias

a morte
vestiu-se de prata
é
uma serpente
que sobe lenta
o último suspiro
da lua
e descansa aos pés
da eternidade dormente
das pedras


27 de maio de 2006

os livros / norman mailer


NORMAN MAILER, NOITES ANTIGAS


I

O LIVRO DE UM HOMEM MORTO

Pensamentos em bruto e violentas forças são o meu estado. Não sei quem sou. Nem aquilo que fui. Não ouço um único som. Abeira-se uma dor que há-de ser como nunca houve alguma…

Será este o medo que sustenta o universo? Será a dor o fundamento? Todos os rios veias de dor? Os oceanos, a minha mente inundada? Tenho uma sede como o calor da terra em fogo. Contorcem-se montes. Vejo ondas de chamas. Aluimentos, clarões, ondas de chamas.

A sede está nos rios do corpo. Os rios queimam, mas não se movem. Há carne - será carne? -debaixo de uma qualquer pedra aquecida. Ergue-se lava em campos consumidos pelo fogo.

Onde, em que gruta, se deram tais desmembramentos? Há bocas vulcânicas a despedir fogo, poços a borbulhar. Os ossos assentam como cascalho sobre a ferida.

Ser-se-á humano? Ou estar-se-á apenas vivo? Como uma folha de erva equivalente a toda a existência no momento em que é arrancada? Sim. Se a dor é o fundamento, uma folha de erva pode conhecer tudo quanto existe.

Um número ardente surgiu perante mim. A chama revelou uma orla tão isenta de vacilações como uma faca, e penetrei por esse ígneo sinal adentro. Em fogo comecei a fluir por entre a clara e ardente existência do número 2.

A dor entrou num latejar. Cada repouso entre cada pontada não era bastante ... Ah, o torcer da esperança, o dilacerar da fibra. Os meus órgãos tinham-se certamente distorcido, sim, e o guinchar do osso ao quebrar. Abriam-se portas sobre explosões.

A dor instalou-se na mais cintilante das luzes. Fiquei exposto à rocha ardendo. Demoníaco, o calor do sol e o sangue a ferver nas veias. Não mais voltaria a ser sangue? Foi então que a corrente dos fogos mais altos me deu a conhecer — pela própria intensidade — que não seria destruído. Tinha de haver qualquer existência do outro lado. Por conseguinte, deixei fugir os meus poderes enquanto carbonizavam no coração. Estes poderes moribundos podiam ainda dar vida a outras porções de mim. Porque eu divisava um fio a estremecer na escuridão, uma gavinha viva no carbono enegrecido das minhas carnes, tão fina como o mais delicado nervo, e, ao longo de cada dor, buscava aquele filamento com todo o requinte de angústia, até que a própria dor adquiriu tal esplendor que tive uma revelação. O filamento não era um fio, mas dois, enrolados entre si com imaculada subtileza. Enredavam-se um no outro durante os espasmos mais intoleráveis, e não obstante eram céleres a apartar-se ao primeiro alívio, e com tal tenuidade de movimentos que tive a certeza de presenciar a vida da minha alma (finalmente vista!) a dançar como poalha sobre as chamas.

A seguir tudo se perdeu de novo. As minhas entranhas estremeceram com uma desagregação oceânica, prestes a alijar toda uma multitude de gorduras, doçarias e sucos da velha carne encharcada em prazeres, com o frenesi de um traidor vomitando tudo sob a tortura. Abriria mão do que quer que fosse para cavalgar mais leve a próxima vaga de repulsa e, na escuridão de vagas de carne fustigando águas naturais de som, forcejava.

Não podia sepultar-me em tais enxofres. Não eram as emanações, mas sim o terror de sufocar; não era a morte pelo fogo, mas sim o solo a sepultar-me. Era a argila! Sobreveio uma visão da argila a vedar as narinas e a boca e os ouvidos, infiltrando-se nas órbitas ... Tinha perdido totalmente a visão do filamento duplo. Havia apenas eu próprio naquelas grutas sepultas e o martelar do meu intestino. Contudo, se eu estivesse destinado a ser soterrado no negrume daqueles gritantes e ferventes objectos, tinha logrado uma visão com que me atormentar. Porque me compenetrara da beleza da minha alma no preciso momento em que não podia alcançar o seu uso. Pereceria com tais ideias ao mesmo tempo que as obtivera?

Chegou então um momento de paz nesta tempestade e tumulto das vias respiratórias. Conheci a desolação solene do aplacado centro do furacão, e nessa calmaria vi com pesar que podia agora ser sábio sem vida na qual aplicar a minha sabedoria. Porque tinha uma perspectiva de antigos diálogos. Outrora tinha vivido como amo e escravo ... e agora um e outro estavam perdidos para toda e qualquer nova captura ... Ah, o diálogo perdido que nunca se tinha dado entre a minha parte melhor e a restante. O cobarde é que fora o amo. Houve então algo que abriu alas nas longas galerias do meu orgulho e obtive uma visão do fundamento da dor, uma visão tão bela quanto estreita. Mas agora os moinhos da injúria giravam de novo. Como uma serpente cujas entranhas se desintegraram, desisti, implorei paz e dei origem à minha sangrenta e coagulante história de convoluto e tortuoso estripado. Houve uma qualquer totalidade de mim que se me esvaiu do ventre, e vi a figura ardente do 2 dissolver-se em chamas. Não mais seria aquilo que fora. A minha alma estava dolorida, humilhada e enfurecida por essa privação, e contudo arrogante como a própria beleza. Porque a dor cessara e eu era novo. Possuía uma vez mais um corpo.





noites antigas
trad. teixeira de aguilar
publicações europa- américa
1983



25 de maio de 2006

falso lugar #036


cigarro



no dia
em que as luzes se apagaram
tinha um cigarro
na mão

um amigo

que me disse tudo
até à cinza

23 de maio de 2006

falso lugar #035

Alessandro Allori , detail: The Fall of Phaethon, 1555/1559




é preciso dizer
que não há mais nada a celebrar
nem os homens
nem as ideias
nem o tempo

essa fenda
que te atravessava a vida
esse rasgão generoso
que te aproximava os céus
fechou-se

estás perante o escuro silêncio
das coisas mortas

não abandones os espelhos

ainda que quebrados
eles são o palácio derradeiro
o último jardim
a gota impossível
de secar

guarda aí a semente
as palavras
as vozes
as imagens

porque o amor
é um minucioso trabalho do tempo
em direcção à morte


20 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


tríptico nómada



I — nova iorque, um


1

outras manhãs
molha o papel na cinza dizendo: «os meus,
ninguém que adivinhasse a mesa rasgada, as meias
balões verdes de areia pesando ao contrário dos olhos ao
pénis, demasia fácil.


2

descruzando o mostrador, para passar
o lápis partido a meio da boca
«seios, igualmente desertos
na quadragésima segunda rua
anos: ardendo
as botas, de cavalaria


3

não tocamos na vaca
lenço preso à narina mais branca
o cuspo manchou todas as vitrinas
sentando-se, que o sangue apodrece
o arame dos testículos
apareceu por acidente adormecido
na janela com chuva


4

ou que não gira, mas
uma palpitação colada aos seios da cama
o polícia negro maneja a ventoinha sobre
retratos, uma moldura mostrando
a lápis, assinado rembrandt.


5

alimentando-se, outras
de aço fundido atrás dos anjos
desabotoando as rosas no urinol azul
helicóptero justamente às 5 e trinta apertando
a narina mais larga contra o peito
dos arranha-céus
«a boca,
urna pedra acaba de cair muito mais tarde.


6

por lentidão ou por ser
o olho da vaca acende e apaga lápis
aparados no televisor uniformernente liso

o perfeito animal
entre as coxas do peixe suor branco
alheio à solidão.


7

por times square o tempo de virar
urna narina ao lado do silêncio
alisando as verrugas molha na cinza
o pénis da hora
na vitrina inconsolável presidente violeta
«são sensíveis,
animal perfeito, ninguém que descubra
o enxame inclinado nas axilas


8

a boca abre-se em duas cores com
plernentares acrílicas ligeiramente so
brepostas;
a chávena na ponta do braço direito a
vança hesitando e o líq
uido quente enfia no buraco da carne
uma lufada de casas intermitentes
«pequeno almoço em tiffany’s».


9

apenas o ar, dedos
enfiados no anel manejando o arame visível, até
as fezes do néon finalmente dissolvem
penumbra, o cacho «meramente,
aperta nos lábios uma saliva incómoda

10

espalhando o alcatrão por sobre a zona
entre as nádegas o cuspo mais facilmente seca
a viúva que o gelo conservou sem perca
«ao frio,
outras
agarrando nos dentes a pedra portátil
espera que o mundo caminhe ao contrário
em direcção ao esperma deixado
vagina sem mãe.




antónio franco alexandre
(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996

18 de maio de 2006

falso lugar #034



Os dias sucedem-se como marés, espraiam-se como portas nesse palácio absurdo que é a vida. Cada uma encerra a surpresa do futuro ou a agressão violenta do passado, numa desordem que nos domina sempre na razão inversa da vontade e do desejo.

Há pontos no tempo que são como lupas apontadas à minúcia desse caos. E é por aí que a loucura ronda e nos seduz ao limiar dos abismos, numa espécie de sonolência inocente onde todos os pensamentos concorrem para a realização desse vitral que é a alma: domínio de todas as sombras e de todos os brilhos.


16 de maio de 2006

10 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


II — paris, sumário


1

paris, o ar, a traqueia
vertida,
dormir em pé nos bancos
(lénine) do parque ratazana
: dormir pelo sofá
(freud) do Hotel do Brasil ao 6°
andar sem as
censor
de olhar tão lentamente a pedra, o rio, a folha,
que o fio ao dissolver-se trans
pareça
a pura forma de ar, íris, parure


2

paris, o desemprego. açorda de gente cm pasmo,
cenoura matinal & mal cozida.
acertar a samarra ao apito do campo
(campo)
onde bois, esterco, o ventre hospitaleiro,
a machada de cobre à entrada das alfândegas.
passo a mão no teu rosto repensando
que nos resta comer a mão do céu
ou, microscópica, a vaca do deleuze.


3

paris, astrologia, antes da lei: a regra
de estar juntos no mar interno à veia:
diz-se (lei
bniz) do compossível.
sofre, traqueia, o golpe
das dedadas no chumbo:
esperando Saturno no quadrante de Vé
nus.


4

volta, paris, à terra prometida: jerus
além de garra
fão & diner`s club:
que o fio ao dividir-se
transpareça
em sua sombra a pedra, a folha,
o rio.


5

paris, bosque de vin
scènes dez da manhã:
dc tal i qual no brr
aço, & no pinheiro cartazes
délecê.


6

asa sem paz (aro), migrante: de empire
state no bolso azul de cheviote,
édipo duro dura, assobiando
madra-goa em chicago, bar-d(o)
e máfia.

paris, ocasional: pele da pele, e-
terna, acaso um salto:
a dança: íris de riso, um rio.




antónio franco alexandre
(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996

9 de maio de 2006

falso lugar #032


quisera tão só esse dom de cegar, de luz trespassar as noites e no ventre do mundo correr mansamente

como se os navios chamassem e um oceano morresse no vazio dos passos, como se fosse a hora de me transformar numa ilha onde só tu naufragasses

7 de maio de 2006

falso lugar #031


que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que o silêncio se curve
como um animal sem voz


4 de maio de 2006

a poesia / antónio franco alexandre


III — veneza , travessia


porque amanhece, subindo
a casa calcária, súbitas asas espalhadas
no silêncio da rocha: o próprio asco
da água calcinada, a curva líquida de merda
à beira do palazzo,
& o doce ventre onde uma espiga ardente
jorra na piazza o céu dentro dos vidros.
suba a cà foscari! os dentes
ácidos de sementes quebradas, ii manifesto
deitado sobre a cama, junto ao sexo.
desabotoando a camisola verde, dizia «os braços,
& na porta de areia os turistas pacientemente esmagavam
o papel dos chuveiros, dizia, «o torso,
& eu sentia, no quadrado cerrado, o suor
escorrido dos lábios, dizia, «a neve,
algures o vento,
& as lajes molhadas, um re de cinza
contra os olhos,
enquanto as asas se despiam, vagarosas.
porque amanhece. almoço de bataglia
c/ spaghetti.
mrs. stone roendo as implacáveis unhas.
a mão que dobra, lenta, a dobra dos cabelos.
a flor pousa no pássaro. miragem. quase noite.
vago, de hashish, o acre
minuto de falar. dizia, «ninguém,
& o quarto quebrado, as mesas onde o mundo
pousa os dedos, porque
certamente amanhece, dizia, «o medo,
& o ombro levantado ameaçava os dias.
invento, a água,
o testículo de ouro,
a lâmina das folhas, invento, na bicicleta verde,
pousava sobre o pêlo: a flor.
& o quarto quebrado, a franja das falanges
sobre a curva das asas.
a pálida brancura das gavetas.
o crânio do silêncio contra a mesa. in
vento, manhãs, quando se parte, de dentro
das esquinas, dizia, «o sol,
algures o sangue,
&. as mãos espalhavam a pele,
cobriam cuidadosas os ossos, o lençol.
noite fora crescia a bicicleta verde,
de cornos espetados sobre o olhar deserto.
esmagava, no peito, o papel das sementes. dizia, «o ar,
& repartido o trigo, amanhecia.
a casa, escura. a relva incendiada. e por dentro
da luz, a seiva do calcário, miragem. invento.
o sol partido em dois. azul, e quase noite
os degraus encardidos, a cama onde adormece
o moedeiro falso.
colar a boca aos passos, o desejo.
devagar se despindo; dizia «o mar,
algures os astros,
& a boca amealhava o ouro ardido.
invento, o ombro de água,
a ruga onde começa
a brancura das asas, horizontal respira.
a carne mansa, do calor da relva
deitada sobre a cama, junto às lajes.
uma manhã, invento, dentro da chuva, erguido
sobre a cinza, dizia «quase noite,
então amanhecia.
ao fundo, longe, vê: a poeira nos pulsos,
& a mão se dobra, lenta, no travão das rodas.
despindo em torno o ar, dizia, «o dia,
& os aviões roncavam sobre a areia.
subindo o céu de vidro,
a casa desertada, ao longe
a cúpula dos sinos, a névoa de são marcos.
ventre que a noite invade,
madrugador o pão dos embarcados. não invento.
papel de azul, as asas, um fio cortado a vento.
inclinado nos olhos, olhava, inclinado nas unhas,
olhava, dizia «amanhece,
porque amanhecia.




antónio franco alexandre

(tríptico nómada)
poemas
assírio & Alvim
1996


3 de maio de 2006

falso lugar #030


um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos

no chão
sombras brancas sem raiz

1 de maio de 2006

falso lugar #029


O tempo é uma fortaleza de papel. Todos os passos se resolvem em caminhos esquecidos. Todos os horizontes se erguem como livros guardados. Leio tudo o que me cerca, como se tivesse que esconjurar impressionantes silêncios. Tenho aqui o mundo e aqueles que lhe traçaram a órbita. Tenho aqui as minhas noites e os meus dias, os anos e as estações, as latitudes e as longitudes... Tenho aqui os fundamentais pontos que me marcaram o norte e o sul.

Dou-me esta ilusão de uma manhã lúcida e depois parto pelos dias adentro, interiormente, dissimuladamente como a maré de um sentimento. Tenho na pele a nostalgia de um lugar perdido. Navios, grandes navios adormecidos no seu azul ferido. Dançam-me a sua morte num pensativo silêncio. Exaltam o seu morrer numa coreografia de lágrimas em ferrugem, escondem na imobilidade dramática dos guindastes o diário intacto das viagens cumpridas. Os arranhões no ferro são linhas de mapas impossíveis e no fim dos seus nomes já não brilha a recompensa de um destino.

Ah! os nomes e as intenções que contêm! Um nome é um cruzeiro no nada, uma corrente que nos arrasta ao incerto do paraíso ou do inferno.