30 de março de 2006

falso lugar #021




sobra de todo o silêncio
o raro acorde
do teu nome


a que solidão altíssima
me entregas
quando te deixas morrer assim
no abraço faminto
do tempo?



foto de abbas kiarostami

29 de março de 2006

os livros / c. s. lewis

C. S. LEWIS, DOR


UM

Nunca ninguém me tinha dito que a dor se assemelhava tanto ao medo. Não que esteja assustado, mas a sensação é a de estar assustado. A mesma ânsia no estômago, o mesmo desassossego, os bocejos. Não paro de engolir em seco.
Noutras alturas é mais como estar ligeiramente ébrio ou ter sofrido uma pancada na cabeça. Há uma espécie de pano invisível entre mim e o mundo. Sinto dificuldade em compreender o que me dizem. Ou talvez dificuldade em desejar compreender.
É tudo tão desinteressante. E no entanto, quero ter pessoas à minha volta. Temo os momentos em que a casa fica vazia. Se ao menos falassem uns com os outros e não comigo.
Há momentos em que, ah!, tão inesperadamente!, algo dentro de mim tenta convencer-me de que, afinal, não sinto assim tanto, não tanto como isso. O amor não é tudo na vida de um homem. Eu era feliz antes de ter conhecido H. Sou uma dessas pessoas que têm muito “a que se agarrar”. Estas coisas acabam por passar. Vá lá, não pode ser assim tão mau. Envergonha-nos darmos ouvidos a esta voz mas, por um momento, parece estar a sair-se bem. E depois é a súbita punhalada do ferro em brasa da memória e todo esse “bom senso” se desfaz em nada como uma formiga na boca de um forno.
No ressalto passamos às lágrimas e ao patético. O sentimentalismo das lágrimas. Quase lhes prefiro os momentos de agonia. Pelo menos esses são límpidos e honestos. Mas o banho de autocorniseração, esse lamaçal, o repugnante prazer, pegajoso e adocicado, de lhe ceder — desgosta—me. E, mesmo quando a ele me abandono, sei que só pode levar-me a deturpar a imagem da própria H. Dê eu mão livre a essa disposição e em poucos minutos terei trocado a mulher real por uma mera boneca sobre a qual choramingar. Graças a Deus, a memória que dela tenho é ainda demasiado forte (mas será sempre demasiado forte?) para me permitir chegar a tal ponto.
Porque H. não era nada assim. O seu espírito era flexível, rápido e enérgico como um leopardo. Paixão, ternura ou dor, nada conseguia desarmá-lo Farejasse ele a mínima baforada de hipocrisia ou pieguice, logo saltava e nos deitava por terra sem nos dar tempo sequer a perceber o que tinha acontecido. Quantas das minhas bolhas de autocomiseração não fez ela rebentar?! Bem depressa aprendi a deixar-me de baboseiras ao falar com ela, a não ser pelo puro prazer — e aí volta a punhalada do ferro em brasa — de a ver apanhar-me em falta e rir-se de mim, Nunca fui tão pouco tolo como enquanto apaixonado de H.
E também nunca ninguém me falou da indolência da dor. Excepto no meu trabalho, onde o mecanismo parece continuar a mover-se praticamente como de costume, abomino o mínimo esforço. Não apenas escrever mas até ler uma carta já é demais. Até barbear-me. Que importa agora se o meu queixo está áspero ou macio? Diz-se que o homem infeliz quer distracções, algo que o faça esquecer-se de si próprio. Talvez, mas só na medida em que um homem, completamente derreado, poderá precisar de mais um cobertor numa noite gelada. Vai preferir ficar para ali a tiritar que levantar-se para o ir buscar. É fácil entender por que motivo os solitários se tornam desleixados e, finalmente, sujos e nojentos.
(...)


dor
trad. carlos grifo babo
grifo
1999

26 de março de 2006

falso lugar #020

é como acordar.

mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...

esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.

qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.

e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.

e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…

podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.

como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.

23 de março de 2006

falso lugar #019


passados



não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.

havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.

eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.


22 de março de 2006

os livros / oscar wilde


OSCAR WILDE, O RETRATO DE DORIAN GRAY



Prefácio

O artista é o criador de coisas belas.
Revelar a arte e ocultar o artista é o objectivo da arte.
O crítico é aquele que sabe traduzir de outra maneira ou com material diferente a sua impressão das coisas belas.
A mais alta, assim como a mais baixa, forma de crítica é uma autobiografia.
Aqueles que encontram feias significações nas coisas belas são corruptos sem serem encantadores. É um defeito.
Aqueles que encontram belas significações nas coisas belas são cultos. Para esses há esperança. São os eleitos aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza.
Não há livros morais nem imorais. Os livros são bem ou mal escritos. Nada mais.
A antipatia do século XIX pelo Realismo é a raiva de Caliban ao ver a sua cara no espelho.
A antipatia do século XIX pelo Romantismo é a raiva de Caliban por não ver a sua cara no espelho.
A vida moral do homem faz parte do assunto do artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito dum meio imperfeito. Nenhum artista deseja provar o que quer que seja. Até as coisas verdadeiras se podem provar.
Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um imperdoável maneirismo de estilo.
O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.
O pensamento e a linguagem são para o artista instrumento de arte.
O vício e a virtude são para o artista materiais de arte.
Sob o ponto de vista da forma, o tipo de todas as artes é a arte do músico. Sob o ponto de vista do sentimento, o tipo é a profissão de actor.
Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo.
Aqueles que descem além da superfície fazem-no por seu próprio risco.
O mesmo sucede àqueles que lêem o símbolo.
É o espectador, e não a vida, que a arte realmente reflecte.
A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que a obra é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.
Pode-se perdoar a um homem o fazer uma coisa útil, enquanto ele a não admira. A única desculpa que merece quem faz uma coisa inútil é admirá-la intensamente.
Toda a arte é absolutamente inútil.



o retrato de dorian gray
trad. de januário leite
círculo de leitores
1972

falso lugar #018




o tempo é uma armadilha na forma daqueles que mais amamos.

21 de março de 2006

a poesia / henry deluy






a memória de ti - não a tua imagem.


*

depois chorar.












henry deluy
de “Primeiras Sequências”
poetas em mateus
quetzal
2002


20 de março de 2006

falso lugar #017



Sandro Botticelli, Birth of Venus (detail)




hoje,
o sopro dos anjos,
onde já nem
a sombra
chegava



19 de março de 2006

17 de março de 2006

frida kahlo


“the frame” 1938


“na saliva
no papel
no eclipse
em todas as linhas
em todas as cores
em todas as jarras
no meu peito
fora, dentro
no tinteiro na dificuldade de escrever na maravilha dos meus olhos, nas últimas luas do sol (mas o sol não tem luas) em tudo e dizer em tudo é estúpido e magnífico DIEGO na minha urina DIEGO na minha boca no meu coração na minha loucura no meu sonho no mata-borrão na ponta da caneta nos lápis nas paisagens na alimentação no metal na imaginação nas doenças nas montras nas suas astúcias nos seus olhos na sua boca nas suas mentiras. “

frida kahlo



(diego & frida
j.m.g. le clézio
trad. manuel Alberto
relógio d´água
1994)

16 de março de 2006

a poesia / josé tolentino mendonça



SIDE OF THE ROAD



Ateei o fogo
quebrei as portas de bronze
desfiz sinais nas pedras lisas
enlouqueci os adivinhos

minha língua tornou-se tão
estranha
que não se pode entender

as multidões vitoriosas
levantam em teu nome grinaldas
tamboris e danças
despojos de várias
cores

tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não
têm olhos



josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005



15 de março de 2006

falso lugar #015

tarde antiga



oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas

o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda

as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante

que durante tanto tempo
me encheram os olhos

numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras

escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal

14 de março de 2006

falso lugar #014



automatic winter

quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

e tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados vermelhos, nem ao longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.

13 de março de 2006

os livros / ortega y gasset


ORTEGA Y GASSET, ESTUDOS SOBRE O AMOR



A POESIA DE ANNA DE NOAILLES

Falemos um pouco da mais poética das condessas e da mais condessa das poetisas. Anna de Noailles é hoje a maior tecedeira do lirismo francês. Com um fogo exemplar, laboriosa, constante, tece cada lustro os versos de um livro que se parece sempre com os anteriores - tão belo, tão ardente, tão voluptuoso. Dir-se-ia que o livro precedente se desfez e foi necessário voltar a tecê-lo. Anna de Noailles é, literariamente, Penélope.
O último volume chama-se As forças eternas. Estas forças eternas são, antes de mais, o amor e a morte. Não se creia, no entanto, que a condessa esperou até agora para cantar estes poderes essenciais. A sua obra gravitou sempre em torno deles, oscilando deleitosamente entre um e outro.
São quatrocentas páginas de poesia minuciosa. Chega até nós um livro repleto de flores, de astros, de abelhas, de nuvens, andorinhas e gazelas. Cada poeta tem um reportório de objectos que são os seus utensílios profissionais. Tal corno o deita-gatos transumante viaja com o seu berbequim e os seus grampos, a condessa precisa de se deslocar com toda essa bagagem para poder realizar as suas preciosas fantasmagorias. Sobre coisas tão bonitas não é possível dizer coisas mais bonitas:

L’aheille aux bonds chantants, vigoureusernent molie,

parece nos seus voos perseguir-se a si mesma.
A andorinha passa com os seus gritos de pássaro que alguém assassina:

Je connais bien ce cri brisant de l’hirondelle
Comme une flèche oblique ancrée au coeur du soir.


Os campanários são doces colmeias de abelhas argentinas.
As rãs são cigarras das águas.
A chuva é um sol que brinca com raios de metal.
Na viagem,

Tes rêveuses prunelles
Contemplaient l´orizon, flagellé et chassé
Par Ie vent, qui, cherchant ton visage oppressé
Faisait bondir sur toi ses fluids gazelles.


A pequena sineta que anuncia o jantar dá saltos de cabrita louca atada à sua corda.
Na noite límpida, os astros são fragmentos do dia.
Há nos versos de Anna de Noailles, tal como na sua prosa, uma excessiva e monótona preocupação com o amor. O amor é tudo; diz várias vezes neste volume:

Amour, tâche pure e certaine,
Acte joyeux et sans remord;
Le seul combat contre la mort,
La seule arme proche et lointaine
Dont dispose, en sa pauvreté,
L’êlre hanté d’éternité.

Este erotismo tão exclusivista cansa um pouco o leitor que não possua uma disposição tão continuada para o delíquio apaixonado. Ao percorrer estas páginas, pensamos mais de uma vez que se trata de uma curiosa ilusão de óptica padecida por este poeta. Não é que o amor seja, em verdade, tudo, mas a eloquência poética só brota em Anna de Noailles de estados de espírito voluptuosos.

Plus je vis, oh mon Dieu, moins je peux exprimer
La force de mon coeur; l´infinité d´aimer,
Ce languissant ou bien ce bondissant orage.
Je suis comme l‘étable où entrent les rois mages
Tenant entre leurs mains leurs cadeaux parfumés.
Je suis cette humble porte ouverte sur le monde;
La nuit, l´air, les parfums et l´étoile m´inondent.

Esta perpétua cantilena voluptuosa flui como um rio denso pelo leito do verso. Não é, pois, propriamente amor; é simplesmente voluptuosidade. As suas metáforas são quase sempre do mesmo tipo; em quase todas se alude ao estremecimento erótico e repercute o espasmo. A alma que nesta poesia se expressa não é espiritual; é, pelo contrário, a alma de um corpo que se diria vegetal.
Se tentarmos imaginar a alma de uma planta, não lhe poderemos atribuir ideias nem sentimentos: não haverá nela mais do que sensações, e mesmo estas, vagas, difusas, atmosféricas. A planta sentir-se-á bem sob um céu benigno, sob a mão branda de um vento suave; sentir-se-á mal debaixo de um temporal, açoitada pela neve inverniça. A voluptuosidade feminina é, talvez, de todas as impressões humanas, a que nos parece mais próxima da existência botânica.
Anna de Noailles sente o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim. Daí a sua prodigiosa sensibilidade para as mudanças atmosféricas, climas, estações. Não obstante a sua insistência amorosa, é revelador que o homem não apareça nunca desenhado no fundo aéreo desta poesia. Em contrapartida, intervêm os seres anónimos e difusos: o vento, a humanidade, o azul, o silêncio.

Le flot léger de l´air vient par ondes dansantes...


Não caberá esta ideia perfeitamente no coração de uma papoila?
(…)



Ortega y Gasset
Estudos Sobre o Amor
Relógio d´Água
2002





12 de março de 2006

falso lugar #013



nunca sobrava uma sílaba. ternamente poderosos, revíamos o mundo do mais alto lugar.

nas manhãs frias de sábado,
a noite ainda na pele.

11 de março de 2006

falso lugar #012



nada te levará tão longe, como os dias cegos de outrora. janelas que se perdiam na bruma, olhos que pousavam no impossível do tempo, movimento perpétuo dos lábios com marés de palavras esculpidas no coração.

foi tudo nesse horizonte afogado. a mesa vazia, o piano calado, o pássaro imóvel. virás por muitos anos, como a espuma dos sonhos perdidos. e a raiva será cantada no paredão da memória até ficarem macias as pedras do caminho.

e será esse o teu Inverno.

10 de março de 2006

a poesia / al berto

Quinta de Santa Catarina


3.

pouco mais há a dizer, caminho largando os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. a grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas estou quase sempre triste. algumas fotografias revelam-me que noutros lugares já estivera triste, por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. este sol queimando a pele das plantas. caminho pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem. hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. as fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim, um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. nem mesmo a vida, nenhuma morte, na mesma posição, reclinado sobre meu frágil corpo, recomeço a escrever, estou de novo ocupado em esquecer-me. a escrita é precária morada para o vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.



Al Berto
O Medo
Assírio & Alvim
1997

9 de março de 2006

falso lugar #011


na curva do rio é que tudo nos espera, é que tudo morre. levam-nos na corrente invisível do tempo, levam-nos no silêncio para nunca mais chegarmos.

ninguém nos há-de esperar no fim da viagem. nunca mais nos havemos de libertar da solidão dos retratos.


falso lugar #010

cedo a esse quase esplendor das coisas que brevemente são eternas. debruço-me sobre esse tempo estático e atinjo a compreensão da morte.

7 de março de 2006

os livros / conde de lautréamont


ISIDORE DUCASSE CONDE DE LAUTRÉAMONT, CANTOS DE MALDOROR


Durante toda a minha vida vi os homens, de ombros estreitos, fazerem, sem uma única excepção, actos estúpidos e numerosos, embrutecerem os seus semelhantes e perverterem as almas por todos os meios. Aos motivos das suas acções chamam glória. Ao ver estes espectáculos, quis rir como os outros; mas isso, estranha imitação, era impossível. Peguei num canivete, cuja lâmina tinha um afiado gume, e rasguei a carne nos sítios onde os lábios se reúnem. Por um momento julguei ter atingido o objectivo. Contemplei num espelho esta boca ferida por minha própria vontade! Era um erro! O sangue que abundantemente corria dos dois ferimentos não deixava aliás distinguir bem se era realmente aquele o riso dos outros. Mas, após alguns instantes de comparação, vi claramente que o meu riso não se assemelhava ao dos humanos, que eu não ria. Vi os homens, de cabeça feia e terríveis olhos enterrados na órbita escura, ultrapassarem a dureza do rochedo, a rigidez do aço fundido, a crueldade do tubarão, a insolência da juventude, a fúria insane dos criminosos, as traições do hipócrita, os comediantes mais extraordinários, a força de carácter dos padres, e os seres mais escondidos por fora, os mais frios dos mundos e do céu; vi-os cansar os moralistas para descobrirem o seu coração e fazerem recair do alto sobre eles a cólera implacável. Vi-os todos ao mesmo tempo: ora, com o mais robusto punho erguido para o céu, como o de uma criança, já perversa, contra a mãe, provavelmente incitados por algum espírito do inferno, com os olhos carregados de um remorso agudo mas cheio de ódio, num silêncio glacial, sem ousarem emitir as meditações vastas e ingratas que abrigavam no peito, tão plenas de injustiça e de horror elas eram, e entristecerem de compaixão o Deus de misericórdia; ora, em cada momento do dia, desde o começo da infância até ao fim da velhice, espalhando inacreditáveis anátemas sem senso comum contra tudo o que respira, contra si próprios e contra a Providência, prostituírem as mulheres e as crianças e desonrarem assim as partes do corpo consagradas ao pudor. Então, os mares erguem as suas águas, engolem as tábuas nos seus abismos; os furacões e os tremores de terra derrubam as casas; a peste e as diversas doenças dizimam as famílias em oração. Mas os homens não dão por isso. Também os vi a corarem e empalidecerem de vergonha pelo seu comportamento sobre a terra; raramente. Tempestades, irmãs dos furacões; firmamento azulado, cuja beleza não admito; mar hipócrita, imagem do meu coração; terra, de misterioso seio; habitantes das esferas; universo inteiro; Deus, que com magnificência o criaste, é a ti que eu invoco: mostra-me um homem que seja bom!... Mas que a tua graça multiplique por dez as minhas forças naturais; pois, perante o espectáculo desse monstro, posso morrer de espanto; morre-se por menos.


Fenda
1988
Trad. Pedro Tamen

5 de março de 2006

falso lugar #008

ainda que nunca mais anoitecesse e no coração de um pensamento (de um pensamento súbito) cantasse um navio de areia
ainda que na corrente nada voltasse, nada soubesse voltar

4 de março de 2006

a poesia / herberto helder




Gárgula.
Por dentro a chuva que a incha, por fora a pedra misteriosa
que a mantém suspensa.
E a boca demoníaca do prodígio despeja-se
no caos.
Esse animal erguido ao trono de uma estrela,
que se debruça para onde
escureço. Pelos flancos construo
a criatura. Onde corre o arrepio, das espáduas
para o fundo, com força atenta. Construo
aquela massa de tetas
e unhas, pela espinha, rosas abertas das guelras,
umbigo,
mandíbulas. Até ao centro da sua
árdua talha de estrela.
Seu buraco de água na minha boca.
E construindo falo.
Sou lírico, medonho.
Consagro-a no banho baptismal de um poema.
Inauguro.
Fora e dentro inauguro o nome de que morro.



Le poème continu
somme anthologique
Institut Camões / Chandeigne
Paris, 2002



3 de março de 2006

falso lugar #007



o soar
da última neve
aos pés
da rainha negra

retratos
são pedaços de abismo
ou restos
de chão firme

já não há mais nada
nem nos livros
nem nas horas
nem nas vozes

está tudo a arder
como se mais nenhuma paisagem
coubesse
na varanda dos meus olhos


2 de março de 2006